30.5.10

Mitos, Ciência e Religiosidade

Artigo de Marcelo Gleiser *

"É possível ser uma pessoa espiritualizada e cética"

Começo hoje com a definição de mito dada por Joseph Campbell, uma dasgrandes autoridades mundiais em mitologia: "Mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre". Sabemos que mitos são narrativas criadas para explicar algo, para justificar alguma coisa. Na prática, não importa se o mito é verdadeiro ou falso; o que importa é sua eficiência.

Por exemplo, o mito da supremacia ariana propagado por Hitler teve consequências trágicas para milhões de judeus, ciganos e outros. O mito que funciona tem alto poder de sedução, apelando para medos e fraquezas, oferecendo soluções, prometendo desenlaces alternativos aos dramas que nos afligem diariamente.

A fé num determinado mito reflete a paixão com que a pessoa se apega a ele. No Rio, quem acredita em Nossa Senhora de Fátima sobe ajoelhado centenas de degraus em direção à igreja da santa e chega ao topo com os joelhos sangrando, mas com um sorriso estampado no rosto. As peregrinações religiosas movimentam bilhões de pessoas por todo o mundo. É tolo desprezar essa força com o sarcasmo do cético. Querendo trazer a ciência para um número maior de pessoas, eu me questiono muito sobre isso.

Como escrevi antes neste espaço, os que creem veem o avanço científico com uma ambiguidade surpreendente: de um lado, condenam a ciência como sendo materialista, cética e destruidora da fé das pessoas. "Ah, esses cientistas são uns chatos, não acreditam em Deus, duendes, ETs, nada!"

De outro, tomam antibióticos, voam em aviões, usam seus celulares e GPSs e assistem às suas TVs digitais. Existe uma descontinuidade gritante entre os usos da ciência e de suas aplicações tecnológicas e a percepção de suas implicações culturais e mesmo religiosas. Como resolver esse dilema?

A solução não é simples. Decretar guerra à fé, como andam fazendo alguns ateus mais radicais, como Richard Dawkin, não me parece uma estratégia viável. Pelo contrário, vejo essa polarização como um péssimo instrumento diplomático. Como Dawkins corretamente afirmou, os extremistas religiosos nunca mudarão de opinião, enquanto um cientista, diante de evidência convincente, é forçado eticamente a fazê-lo. Talvez essa seja a distinção mais essencial entre ciência e religião: o ver para crer da ciência versus o crer para ver da religião.

Aplicando esse critério à existência de entidades sobrenaturais, fica claro que o ateísmo é radical demais; melhor optar pelo agnosticismo, que duvida, mas não nega categoricamente o que não sabe. Carl Sagan famosamente disse que a ausência de evidência não é evidência de ausência.

Mesmo que estivesse se referindo à existência de ETs inteligentes, podemos usar o mesmo raciocínio para a existência de divindades: não vejo evidência delas, mas não posso descartar sua existência por completo, por mais que duvide dela. Essa coexistência do existir e do não-existir é incômoda tanto para os céticos quanto para os crentes. Mas talvez seja inevitável.

A ciência caminha por meio do acúmulo de observações e provas concretas,replicáveis por grupos diferentes. A experiência religiosa é individual e subjetiva, mesmo que, às vezes, seja induzida em rituais públicos. Como escreveu o psicólogo americano William James, a verdadeira experiência religiosa é espiritual e não depende de dogmas. Apesar de o natural e o sobrenatural serem irreconciliáveis, é possível ser uma pessoa espiritualizada e cética.

Einstein dizia que a busca pelo conhecimento científico é, em essência, religiosa. Essa religião é bem diferente da dos ortodoxos, mas nos remete ao mesmo lugar, o cosmo de onde viemos, seja lá qual o nome que lhe damos.

*Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, emHanover (EUA) - Artigo publicado na "Folha de SP, 11/4/2010

27.5.10

Afinal, você quer ou não ser feliz?


Christ of Saint John of the Cross, Salvador Dali

Para onde vais? Tantos milhares de anos são necessários para acordar, mas, por piedade, tu acordarás?
(Christopher Fry)

Costumo mencionar na maioria de minhas matérias que o grito de Aquário é "Filhos, desçam da cruz!", mas infelizmente, muitos de nós, ainda aprisionados pelas correntes da Era de Peixes, que devo admitir, são dificílimas de se romper, não conseguem captar intuitivamente a profundidade que existe por trás dessa pequena frase.

Todos nós, pelo menos em sua maioria, nos acostumamos à imagem de Jesus Cristo pregado na cruz, que, se refletirmos com bastante seriedade, é uma imagem profundamente deprimente.No decorrer de muitas de nossas vidas nos ensinaram que a mensagem que Jesus Cristo nos deixou é uma mensagem de sofrimento. E que esse é um sofrimento que todos nós devemos manter em nossos corações e em nossas vidas. Se você parar para refletir e se aperceber quais sentimentos são desencadeados quando olhamos Sua imagem na cruz, você perceberá que imediatamente a sensação de culpa pelo Seu sofrimento é aflorada, porque nos ensinaram que Ele, o nosso Grande Mestre Jesus, morreu por nós.

Jesus, em sua passagem aqui na Terra, nos deixou uma série de mensagens, que se você estudar com mais profundidade, perceberá que nenhuma delas nos fala de sofrimento, de aprisionamento ou culpa. Todas as mensagens de Jesus nos falam de Amor, Compaixão, Igualdade, Fraternidade, Liberdade, Vida e Verdade. Sentimentos esses que, se verdadeiramente conscientizados e desenvolvidos dentro de nós, nos remetem para bem longe do sofrimento.

O amor, nosso maior legado como humanos, é libertador, assim como a compaixão, a vida e a verdade.

...

Hoje, passados mais de dois mil anos, ainda resistimos à verdade de seus ensinamentos, ainda acreditamos que sua mensagem é de sofrimento, que a imagem que devemos guardar Dele é a de sua dor na cruz. Por que não nos apegamos à imagem e ao júbilo da ressurreição? Por que ainda acreditamos que nosso caminho pela Terra deva ser de sofrimento?

Essa foi nossa durante todos esses séculos, mas agora, a mensagem deve ser reavaliada, pois nosso inconsciente coletivo está carregado de dor e isso deve mudar...

Quando você se olha no espelho, o que enxerga? Você se sente uma pessoa feliz? Como está se sentindo hoje? Radiante, como chispa de Deus que você é? Ou ainda acredita que tem alguma dívida a pagar? Você acha mesmo que está sofrendo porque está cumprindo algum carma? Ou não consegue sair dessa situação porque tem medo?

Todo poder de criação está em você. A religião ortodoxa e o materialismo nos tirou o direito de escolha, sabia? A realidade que vivemos é fruto de uma criação que não é nossa, que foi imposta pelo poder. Pense nisso. A não ser que se sinta feliz com a forma de vida que tem agora. Se esse for o seu caso, que bom que conseguiu criar sua própria realidade, mas essa não é a situação de vida da grande maioria.

Se você está infeliz por algum motivo, não se esqueça que a saída dessa situação está em suas mãos, ou melhor, está em sua mente, em seu poder mental. Você é um filho de Deus, não me canso de dizer isso. Deus é uma Grande Força, e você possui essa força dentro de você, todos nós a possuimos. Aproprie-se desse poder, que é seu! Foi dado a você desde os seus primeiros dias neste planeta, mas somente agora você está se conscientizando que o possui.

Pare agora e reflita, pense, observe-se, observe seus pensamentos, qual a vibração que eles possuem neste exato momento? Sua mente está repleta de bons ou maus pensamentos? Você está se olhando como um ser perfeito ou imperfeito? Você se acha merecedor de tudo aquilo que deseja, ou há um lado em sua mente que diz: Imagina que você conseguirá, isso não é para você! Não se iluda, não dê ouvidos ao seu ego. Você possui uma mente divina e é a ela que deve se unir. Uma mente unida ao seu coração e ao coração do Universo, que é abundante. Uma mente positiva, criativa e repleta de poder. Aproprie-se dessa mente, que é sua! Acredite em você! Desça da cruz, pois foi você mesmo quem se crucificou.

Eunice Ferrari

12.4.10

A MITOLOGIA AFRICANA


A mitologia, tanto a européia como as de outras tradições, aborda instintos humanos (como o poder do amor, do ciúme, da ansiedade; o conflito de gerações; a violência; a tristeza da doença e dos sinistros; o mistério da morte; o desafio do desconhecido; os tempos de má e boa fortuna e todo o peso do destino). Contos de homens e deuses retratam os reveses e as alegrias da vida.
Nietzsche observou que os gregos ofereciam festas a todas as suas paixões e inclinações; eles consideravam como divino tudo que tem algum poder no homem; o cristianismo jamais compreendeu esse mundo pagão e sempre o combateu e o desprezou.

A mitologia européia é interpretada hoje sem restrição. Mas há restrição quando falamos em mitologia africana, certamente porque a relacionamos com o culto aos orixás (candomblé e umbanda), ainda vivo na África e no Brasil.

Devemos deixar de lado o aspecto religioso e conhecer a beleza e a riqueza da cultura africana, na qual se inclui a sua mitologia e sua arte. Os principais produtos artísticos africanos são as máscaras e as esculturas em madeira, as quais, para os membros da sociedade africana, constituíam objetos sagrados com poderes sobrenaturais: acreditavam que poderiam atrair a destruição ou distribuir bençãos.

As máscaras e as esculturas em madeira têm forma angulosa, assimétrica e distorcida; uma forma não-realista, obviamente para expressar, com efeito dramático, que os objetos abrigam espíritos poderosos; nada de aparência real, mas formas verticais e membros do corpo alongados.

Pablo Picasso conheceu, por volta de 1905, a arte africana, a qual muito o atraiu, principalmente pela sua independência da tradição européia. Disse Picasso sobre as máscaras africanas: "Senti que eram muito importantes ... As máscaras não eram apenas peças esculpidas ... Eram magia".
A arte africana inspirou Picasso a criar o movimento cubista, o qual recebeu a influência das distorções do entalhe africano, destinadas a mostrar simultaneamente aspectos múltiplos de um objeto. As técnicas cubistas expressam intensas emoções e conflitos internos. O quadro Les Demoiselles d'Avignon representa o ponto de transição da fase de influência africana para o puro Cubismo; esse quadro é uma obra de ruptura (encerrou o reinado de quase quinhentos anos da Renascença), uma das poucas obras que, sozinha, alterou o curso da arte; os cinco nus do referido quadro têm anotomia indistinta, olhos tortos, orelhas deformadas e membros deslocados.

As máscaras não eram apenas peças esculpidas ... Eram magia. Esse sentimento de magia, manifestado por Picasso, nos lembra recente ensinamento de Desmond Morris, autor de "O Macaco Nu", um dos maiores especialistas em comportamento humano e fabricante de amuletos. A revista Superinteressante perguntou-lhe: Não é contraditório que um cientista faça esse tipo de jóias? Você crê no poder desses objetos?

Respondeu Desmond: Claro que não. Mas creio no poder de quem os leva. Está provado que se você acredita que um objeto vai lhe ajudar e proteger, suas defesas crescem e sua energia flui com mais harmonia. Tudo está em nosso interior.

Na mitologia africana, há um deus supremo (Olodumaré), o qual criou os orixás (deuses) para governarem e supervisionarem o mundo. O orixá é uma força pura e imaterial, a qual só se torna perceptível aos seres humanos manifestando-se em um deles; o ser escolhido pelo orixá, um de seus descendentes, é chamado seu elégùn, o veículo que permite ao orixá voltar à terra para saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram. Ainda inexiste um panteão de orixás bem hierarquizado, único e idêntico.

Quais os principais deuses (ou orixás) ou autoridades da mitologia africana ? Exu, Ogum, Oxóssi, Ossain, Orunmilá, Oranian, Xangô, Iansã, Oxum, Obá, Iemanjá, Oxumaé, Obaluaê, Nanã e Oxalá. Africanos e não africanos têm em comum tendências inatas e um comportamento geral que corresponde às características de um orixá (arquétipos).

Exu é o guardião dos templos, das casas, das cidades e das pessoas; serve de intermediário entre os homens e os deuses (chamado de mensageiro, compadre ou homem da rua); suas cores são o vermelho e o preto. Os missionários compararam Exu com o Diabo, símbolo da maldade, porque Exu é astucioso, grosseiro, vaidoso e indecente. Mas Exu possui o seu lado bom; revela-se o mais humano dos orixás, justamente porque não é completamente mau, nem completamente bom. Exu é o arquétipo das pessoas com caráter ambivalente (ao mesmo tempo boas e más), porém com inclinação para a maldade, a obscenidade e a corrupção.

Ogum é o deus do ferro, senhor da guerra e dono das estradas, patrono das artes manuais; sua cor é o azul escuro. Sincretizado com Santo Antônio de Pádua (Bahia) e São Jorge (Rio de Janeiro), Ogum é o arquétipo das pessoas violentas, briguentas e impulsivas, incapazes de perdoar as ofensas de que foram vítimas.

Oxóssi é o deus dos caçadores; veste-se de verde na Angola e de azul-claro no Ketu. Oxóssi é o arquétipo das pessoas espertas, rápidas, sempre alerta e em movimento; pessoas cheias de iniciativa e sempre em vias de novas descobertas ou de novas atividades; pessoas com senso de responsabilidade e dos cuidados para com a família.

Ossain é o deus das plantas medicinais e litúrgicas. O arquétipo de Ossain é o das pessoas de caráter equilibrado, capazes de controlar seus sentimentos e emoções; pessoas com extraordinária reserva de energia criadora e resistência.

Orunmilá não é um orixá; é o senhor das advinhações; é consultado em caso de dúvida, quando as pessoas têm uma decisão importante a tomar a respeito de uma viagem, de um casamento, de uma compra ou venda; é consultado ainda quando as pessoas querem saber a causa de uma doença.

Oranian é o orixá famoso pelas suas numerosas conquistas, rei da terra.

Xangô, viril e atrevido, senhor do fogo, é o deus justiceiro, o qual castiga os mentirosos, os ladrões e os malfeitores; sua cor é o vermelho e o branco; esposo de Iansã, Oxum e Obá. Sincretizado com São Jerônimo, Xangô é o arquétipo das pessoas voluntariosas e enérgicas, altivas e conscientes de sua importância real ou suposta; pessoas que sabem guardar um profundo e constante sentimento de justiça.

Iansã, de temperamento ardente e impetuoso, guerreira, é a divindade dos ventos, das tempestades e do rio Níger; sua cor é o vermelho e o branco. Sincretizada com Santa Bárbara, Iansã é o arquétipo das mulheres audaciosas, poderosas e autoritárias; mulheres cujo temperamento sensual e voluptuoso pode levá-las a aventuras amorosas extraconjugais múltiplas e frequentes.

Oxum é a divindade do rio do mesmo nome; controla a fecundidade, daí por que as mulheres que desejam ter filho dirigem-se a ela. Oxum é chamada de Ialodê, título conferido à pessoa que ocupa o lugar mais importante entre todas as mulheres da cidade; além disso, ela é a rainha de todos os rios e exerce seu poder sobre a água doce. Sincretizada com Nossa Senhora das Candeias (Bahia) e com Nossa Senhora dos Prazeres (Pernambuco), Oxum é o arquétipo das mulheres graciosas e elegantes com paixão pelas jóias, perfumes e vestimentas caras; mulheres que são símbolos do charme e da beleza; mulheres que têm grande desejo de ascensão social.

Obá é a divindade do rio do mesmo nome; sua cor é o vermelho e o branco. Sincretizada com Santa Catarina, Obá é o arquétipo das mulheres valorosas e incompreendidas; mulheres que, em compensação às frustrações, encontram sucessos materiais, em virtude de sua avidez de ganho e do cuidado de nada perder dos seus bens.

Iemanjá é a deusa do mar, das ondas turbulentas, símbolo da maternidade fecunda e nutritiva (mulher de Oxalá, também é chamada de Inaê, Oloxum ou Janaína); suas cores são o azul e o branco. Sincretizada com Nossa Senhora da Imaculada Conceição, Iemanjá é o arquétipo das mulheres voluntariosas, fortes, rigorosas, protetoras, altivas e, algumas vezes, impetuosas e arrogantes; mulheres que se preocupam com os outros; maternais e sérias; mulheres sem a vaidade de Oxum, mas que gostam do luxo, dos tecidos azuis e vistosos.

Oxumaré, símbolo da riqueza, da continuidade e da permanência, é a serpente-arco-íris (é ao mesmo tempo macho e fêmea); ele transporta as águas da Terra para o Céu através do arco-íris; suas cores são o verde e o amarelo. Oxumaré é o arquétipo das pessoas que desejam ser ricas; das pessoas pacientes e perseverantes nos seus empreendimentos e que não medem sacrifícios para atingir seus objetivos.

Obaluaê é o deus da varíola e das doenças contagiosas; pune os malfeitores e insolentes enviando-lhes a varíola; cura ou faz ficar doente (também chamado de Omulu); suas cores são o preto e o branco. Sincretizado com São Lázaro e São Roque (Bahia) e com São Sebastião (Pernambuco e Rio de Janeiro), Obaluaê é o arquétipo das pessoas com tendências masoquistas; pessoas que gostam de exibir seus sofrimentos e suas tristezas, das quais tiram uma satisfação íntima; pessoas que, em certos casos, se sentem capazes de se consagrar ao bem-estar dos outros.

Nanã é deusa das águas paradas dos lagos e lamacentas dos pântanos. Sincretizada com Sant'Ana, Nanã é o arquétipo das pessoas que agem com calma, benevolência, dignidade e gentileza; das pessoas lentas no cumprimento de seus trabalhos e que julgam ter a eternidade à sua frente para acabar seus afazeres.

Oxalá, o Grande Orixá, o primeiro orixá criado por Olodumaré (conhecido também por "O Rei do Pano Branco"); patrono da fecundidade e da procriação; esposo de Yemanjá; sua cor é o branco. É sincretizado na Bahia com o Senhor do Bonfim. Oxalá é o arquétipo das pessoas calmas e dignas de confiança; das pessoas respeitáveis e reservadas, dotadas de força de vontade inquebrantável.

Os colonizadores portugueses reprimiram o culto aos orixás, porque o viam como feitiçaria. Os escravos africanos fizeram então a associação dos orixás com os santos católicos, formando o sincretismo religioso de hoje.

Jorge Amado, no capítulo Macumba de seu livro Jubiabá, relata uma festa na casa do pai-de-santo Jubiabá:

Na sala estavam todos enlouquecidos e dançavam todos ao som dos atabaques, agogôs, chocalhos, cabaças. E os santos dançavam também ao som da velha música da África, dançavam todos os quatro, entre as feitas, ao redor dos ogãs. E eram Oxóssi, o deus da caça, Xangô, o deus do raio e do trovão, Omulu, o deus da bexiga, e Oxalá, o maior de todos, que se espojava no chão.
No altar católico que estava num canto da sala, Oxóssi era São Jorge; Xangô, São Jerônimo; Omulu, São Roque; e Oxalá, o Senhor do Bonfim - que é o mais milagroso dos santos da cidade negra da Bahia de Todos os Santos e do pai-de-santo Jubiabá. É o que tem a festa mais bonita, pois a sua festa é toda como se fosse candomblé ou macumba.

Esclarece Jorge Amado: na porta da casa do pai-de-santo Jubiabá, negras vendiam acarajé e abará; antes da festa, fizeram o despacho de Exu, o qual foi perturbar outras festas mais longe.

(Newton Freitas)

8.4.10

Medo, razão e fé



Os sentimentos de medo e esperança são fundamentais na vida cotidiana em vários aspectos. A sociologia centralizou seus estudos nas relações de poder e dominação. Neste contexto, a indagação central passou a ser por que os homens obedecem? E a resposta mais sólida parece ser: por medo e/ou esperança. Medo de sofrer as consequências da rebeldia e esperança nas promessas do dominador. Mas esses dois sentimentos não permitem somente o exercício do poder, eles também alavancam a ciência e a religião.

A ciência é uma atividade essencialmente racional, voltada para desvendar, explicar ou compreender o funcionamento da natureza e do homem e desta forma diminuir o medo e injetar promessa de um mundo melhor, promessa sempre adiada. A ciência, não há menor dúvida quanto a isso, tem contribuído sobremaneira para elucidar enigmas do mundo, afastando medos, ilusões e permitindo intervenções favoráveis ao progresso humano em inúmeros setores da vida, embora, ao mesmo tempo, tenha proporcionado a degradação da natureza e oferecido meios de destruição. Mas o que caracteriza o efeito da ciência é um contínuo processo de racionalização, um processo de desencantamento do mundo, tornando o mundo mais banal e trivial, liberto de deuses e falsos mistérios. O trovão não é mais a voz dos deuses e a lepra (hansianismo), sinal de castigo de Deus.

O homem tornou-se mais senhor de si mesmo e de seu destino e, neste sentido, a religião pôde e pode ver a ciência como sua grande inimiga. A ciência, com efeito, obriga a religião, baseada na fé do desconhecido e não na razão do conhecido, a recuar constantemente em suas interpretações, assim como não é mais possível à religião ver a terra como centro do universo ou acreditar que o mundo foi criado em sete dias e que o mal é consequência da transgressão de Eva.

A racionalização propiciada pela ciência obriga a religião a abandonar sua magia, sua mitologia e suas ilusões para centrar-se na sua principal função que é de dar significado à vida, tarefa para a qual a ciência se encontra totalmente despreparada, já que, metodologicamente, lida com explicações e não com significados.

Assim sendo, tanto a ciência como a religião, embora constantemente (e desnecessariamente?) rivalizem entre si, contribuem para diminuir o medo dos homens como para aumentar a esperança em uma vida melhor na terra. A fé religiosa acrescenta a esperança da vida eterna. Para muitos fieis, todavia, & talvez para a grande maioria deles & a fé não é busca de sentido diante do mistério da vida e da consciência; não visa o além, o sobrenatural, a glória de Deus; não visa a salvação da alma, mas, de maneira mais prosaica, a fé visa curar as dores deste mundo; o bem de salvação procurado é a redenção neste mundo, a obtenção de favores, aqui e agora.

A salvação desejada não é tanto a da vida eterna, mas a salvação da doença, da pobreza, do amor perdido, do filho pródigo, etc., isto é, a salvação das misérias e contingências deste mundo, em busca de uma vida terrestre feliz. Sem dúvida esta fé resvala para a religiosidade, quando não para a magia em busca de todo tipo de cura e milagre, o que ocorre quando devotos correm para Juazeiro, Canindé, Lourdes ou Fátima; a religião torna-se religiosidade e se desprende totalmente da fé teológica, da fé na Páscoa, isto é, na passagem da morte do Cristo à sua ressurreição, comprovando a sua divindade. O Cristo, Luz, Caminho e Verdade, é certamente menos atraente que Nossa Senhora e uma plêiade de santos objetos de idolatria (ou quase idolatria), o que pode explicar que a Páscoa, data magna da cristandade teológica, seja menos festejada do que o aniversário de muitos santos.

O homem contemporâneo, contrariando a sociologia dos anos 50 do século passado, não vive somente da razão e da ciência, embora delas precise; não vive somente da fé na salvação da alma e da Glória de Deus; ele vive, acima de tudo, da emoção da religiosidade e das promessas de milagres para dissipar seus medos e sacudir sua esperança numa vida melhor neste mundo, contingente e mortal.


Texto de André Haguette - Sociólogo - Publicado em 04.04.2010 no jornal O Povo - Email: haguette@superig.com.br

1.4.10

Auto-sacrifício ou paixão pela vida?


Para a tradição cristã, a Semana Santa é por excelência a memória das últimas horas da vida de Jesus e sua ressurreição. Nos evangelhos, encontramos algumas narrativas sobre a paixão e a ressurreição de Jesus, interpretações feitas pelos cristãos das origens, como tentativas de compreender e dar sentido à terrível e cruel morte de Jesus.
Ao longo da história do cristianismo, tais narrativas receberam diversas interpretações. Uma das mais marcantes, é certamente aquela que as igrejas cristãs afirmam que Jesus Cristo morreu por nós, pelos nossos pecados, um exemplo supremo de auto-sacrifício.
A teologia do auto-sacrifício defende que Jesus se apresentou voluntariamente para ser crucificado como um gesto de amor e obediência a Deus, seu pai, para salvar a humanidade pecadora. Percebemos aqui uma visão espiritualista que compreende a violência e o sacrifício como reveladores de uma realidade mais elevada e mais importante que a vida e o compromisso de Jesus com a justiça. E mais importante ainda do que a vida de milhares de pessoas que são crucificadas diariamente sob as mais variadas formas de violência e opressão.
Pode-se dizer que tal interpretação do sacrifício feita pela tradição, atingiu o centro do coração da doutrina cristã ao longo dos séculos. E difundiu uma mensagem que está enraizada em uma teologia da cruz, que inspirou os ideais do cristianismo como o amor sacrificial, a humildade, a abnegação, a obediência e resignação etc.
A grande maioria das mulheres brasileiras, somos socializadas sob a influência desses ideais cristãos, que afeta profundamente a nossa vida, o que inclui até aquelas que não são cristãs. Essa socialização, quando não analisada criticamente, contribui enormemente para moldar a aceitação - com resignação - da violência impetrada contra nós.
Propomos aqui uma mudança de lentes para ler e compreender a teologia da cruz. Troquemos as lentes do "sacrifício como fon te de salvação" pelas lentes das experiências concretas das violências que são perpetradas contra as mulheres em nossas igrejas e sociedade e suas lutas para mudar tal situação.
Essa mudança de foco nos leva a ler e interpretar as narrativas dos evangelhos sobre a paixão e ressurreição de Jesus como uma conseqüência trágica de sua fidelidade e sua recusa a desistir de seu compromisso diante da opressão romana. E não como uma entrega abnegada à vontade de seu pai divino.
A partir dessas lentes, perguntemos à teologia da cruz:O que a teologia cristã do sacrifício como salvação tem provocado na vida das mulheres? Ela contribui de fato para transformar a realidade de violência contra as mulheres ou para a sua manutenção? Essa teologia defende a que interesses?
O que constatamos no dia-a-dia em nossas igrejas é que as mulheres que vivem situações de violência doméstica, por exemplo, são muitas vezes orientadas pelas lideranças religiosas a - em nome da f idelidade a um sacramento - aceitar submissas os abusos. E, dessa forma, estariam supostamente seguindo os passos de Jesus, já que ele foi fiel ao sacrifício até a morte - e morte de cruz. Assim, as igrejas pregam que, para sermos como Jesus, nós temos que dar a nossa vida em obediência fiel à vontade de Deus. Mesmo que esta fidelidade possa significar violência e, em muitos casos, a morte de muitas mulheres.
No contexto sócio-histórico brasileiro, o número de registros de agressões às mulheres aumentou em 22,3% de 2007 a 2008, passando de 20.050 ocorrências para 24.523. Sem contar que esses registros não discriminam as violências por discriminações racistas, sexistas e homofóbicas, visto que a violência sofrida pelas mulheres não é somente a de gênero, mas são diversas e se multiplicam dependendo do lugar que cada mulher ocupa na pirâmide social.
Frente a este contexto, juntamo-nos às teólogas feministas, que propõem uma teologia que apóia as mulheres violentadas para atuarem historicamente com autoridade e autonomia, de forma a nomear e transformar a violência e não suportá-la em silêncio. Uma teologia que ajuda as pessoas a lidarem com a violência praticada contra Jesus e contra as mulheres e outras pessoas em nossos dias. Uma teologia que não defende o martírio de alguns e abundância e impunidade para outros.
Por isso o nosso convite é para participar nas transformações dos discursos teológicos, nas liturgias, para que estas, seja realmente apoio para as vidas das mulheres e não uma reprodução da violência.
Será que realmente o que traz a salvação é o sacrifício, a violência, a resignação, a submissão, a morte? Por que nossa sociedade, enquanto salva os ricos, condena as pessoas pobres ao impor-lhes sacrifícios insuportáveis, pesadas cruzes?
A resposta é clara: nas experiências concretas do dia-a-dia, a salvação para a vida de milhares de mulheres não está na espera de um poder onipotente, mas sim nos grupos que lutam solidariamente no enfrentamento e na resistência à violência. Tais lutas políticas podem ser encontradas em diversos grupos e organizações espalhados/as pelos quatro cantos do Brasil, que lutam para transformar a realidade brasileira das mais diversas formas de violência cometidas contra as mulheres dentro e fora de suas casas.
São essas lutas que alimentam a paixão pela justiça e a resistência à violência que podem oferecer a todas as mulheres e outras pessoas violentadas um sentido diferente para a ressurreição que celebramos nestes dias.

Católicas pelo Direito de Decidir

30.3.10

Um poema de Walt Whitman


(Walt Whitman - 31.05.1819 - 26.03.1892)

E farei os poemas do meu corpo
E do que há de mortal.
Pois acredito que eles me trarão
Os poemas da alma e da imortalidade.
E à raça humana eu digo:
-Não seja curiosa a respeito de Deus,
pois eu sou curioso sobre todas as coisas
e não sou curioso a respeito de Deus.
Não há palavra capaz de dizer
Quanto eu me sinto em paz
Perante Deus e a morte.
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda
Nem um pouquinho...
Ora, quem acha que um milagre alguma coisa demais?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres...
Cada momento de luz ou de treva
É para mim um milagre,
Milagre cada polegada cúbica de espaço,
Cada metro quadrado de superfície
Da terra está cheio de milagres
E cada pedaço do seu interior
Está apinhado de milagres.
O mar é para mim um milagre sem fim:
Os peixes nadando, as pedras,
O movimento das ondas,
Os navios que vão com homens dentro
- existirão milagres mais estranhos?

22.3.10

Padre Cícero, o fenômeno


(Cícero Romão Batista - Crato, 24.05.1844 - Juazeiro do Norte, 20.07.1934)

O fenômeno padre Cícero, dentro do quadro geral das manifestações de messianismo no Nordeste brasileiro, explica-se em grande parte por se terem mantido extremamente vivas na região tradições místicas e ascéticas da Idade Média ibérica. Cícero Romão Batista nasceu no Crato CE em 23 de março de 1844. Ordenou-se em 1870, contra o voto do reitor do seminário, que lhe censurava a propensão a visões, e em abril de 1872 fixou-se como pároco em Juazeiro do Norte, que tinha então cerca de 300 habitantes.No início do ministério, o padre Cícero dedicou-se a um apostolado de propensões místicas. Em 1891 começaram a circular notícias de seus milagres. Afirmava-se que, dois anos antes, ao dar comunhão a uma mulher do povo, a hóstia se convertera em sangue, fato que se teria repetido em público várias vezes. Um médico que examinara a mulher garantiu, com firma reconhecida em cartório, tratar-se de milagre. Começaram a afluir a Juazeiro romarias de nordestinos pobres, vindos de todo o Ceará e dos estados vizinhos, alguns dos quais ofereciam animais, jóias e até propriedades. Acusado de heresia, padre Cícero foi suspenso em 1897 das ordens religiosas e exilado na povoação de Salgueiro, até ser enviado a Roma, para explicar-se. Confirmada a suspensão, em 1908 regressou a Juazeiro. Ao contrário, porém, do que esperavam as autoridades eclesiásticas, a viagem a Roma só contribuiu para lhe aumentar o renome. Nesse mesmo ano chegou à povoação um médico do sertão baiano, Floro Bartolomeu da Costa, que formou uma oportunística aliança política com o padre Cícero. Graças ao fluxo de romeiros, Juazeiro tornou-se importante centro artesanal. Em 1911 o distrito foi elevado a município, com o padre Cícero como prefeito. Presidiu, então, um pacto de coronéis da região em apoio ao governador do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Acióli. Em janeiro do ano seguinte, porém, Acióli foi derrubado e sucedido pelo coronel. Marcos Franco Rabelo, como parte do movimento, contra as oligarquias nordestinas, chamado "salvações".Quando Rabelo exonerou o padre Cícero das funções de prefeito, Floro Bartolomeu foi ao Rio de Janeiro para obter de Pinheiro Machado o apoio do governo federal a um plano que visava a depor Rabelo e restabelecer o domínio dos coronéis. De volta ao Ceará, Floro comandou o ataque ao quartel da força pública de Juazeiro, em 9 de dezembro de 1913. Três dias mais tarde, uma "assembléia legal" o nomeou presidente temporário do sul do estado. Ao saber do apoio de padre Cícero ao movimento sedicioso, Rabelo ordenou ao sacerdote que restabelecesse a ordem e este respondeu que não podia evitar que o povo se defendesse. Era o início da guerra dos jagunços. Com trinta mil habitantes, Juazeiro já se tornara a segunda cidade do sertão do Cariri, depois do Crato. O exército de jagunços, recrutado entre cangaceiros e romeiros, ergueu trincheiras em volta da cidade e repeliu os ataques da força oficial. Amparados na crença de que "homem abençoado pelo padim Ciço não morria de bala", os rebeldes marcharam contra Fortaleza, saqueando as cidades no caminho. Em março de 1914 o governo federal decretou a intervenção no estado e destituiu o governador Rabelo. A guerra civil acabou. A população excedente de Juazeiro foi encaminhada para as fazendas da região, inclusive as propriedades do próprio padre Cícero, já então "o maior agricultor do Cariri" e importante "coronel" da oligarquia local. Elegeu-se sucessivamente vice-governador e deputado federal, e só não foi governador porque não quis afastar-se de Juazeiro. A fama de seu nome ia do Amazonas à Bahia. Considerado santo e profeta infalível, alguns o tinham até como pessoa da Santíssima Trindade. O próprio Lampião visitou-o mais de uma vez. O declínio político do padre Cícero acompanhou a decadência do cangaço, sobretudo após a revolução de 1930. Em 1933 seu candidato foi derrotado nas eleições para a Assembléia Constituinte. O padre Cícero, até hoje celebrado pelos poetas populares no Nordeste, morreu em Juazeiro,em 20 de julho de 1934.

Orixás do Candomblé

Os orixás são ancestrais divinizados do candomblé – religião trazida da África no século XVI. Entre mais de 200, apenas 12 deles são cultuados no Brasil...

O culto é celebrado pelo pai-de-santo, chefe do terreiro onde a cerimônia acontece, e tem início o despacho de Exú... Começa então, o toque dos tambores que marcam o rítmo de uma dança de roda para que os filhos-de-santo incorporem seus orixás. Passam a receber dos participantes pedidos de ajuda e de proteção. A duração mínima do ritual é de 2 horas.

Nota: “Orixás”, by Pierre Verger.

Clique nos nomes dos orixás, abaixo:

OLORUM – Olorun, Olodumare
IFA – Orunmila, Orunla, Ifa (preto-velho)
EXU – Eshu, Esu, Echu
IBÊJI – Ibeji, Taiwo, Kehinde (crianças)
NANÃ – Nana Buruku
OBALUAIÊ – Sanpanna, Babalu aye, Obaluaé, Omolu
OXALÁ – Obatalá, Orisanla in Africa, Oshalufon, Oshaguian, Oduduwa, Oshala in the New World.
OGUM – Ogun, Ogu, Ogum – Balogun
OSSAIM – Osanyin, Osain (omiero)
OXÓSSI – Osoosi, Oshosi, Oxossi – caçador
OXUMARÉ – Osumare, Ochumare
XANGÔ – Shango, Sango Chango – rei guerreiro
IANSÃ – Oya, Yansa, Iansa
IEMANJÁ – Yemoja, Iyemanja, Yemaya
OXUM – Osun, Oshun
OBÁ – Oba



O século XVIII ia chegando ao fim. As idéias liberais de “igualdade, liberdade e fraternidade”, que levariam à Revolução Francesa, conquistavam o mundo e encontravam eco também no Brasil, onde os senhores das terras e escravos, revoltados com os altos impostos cobrados por Portugal, começavam a ensaiar a independência.

Claro que essa “liberdade” não se estendia aos negros, que há mais de 200 anos vinham construindo a riqueza do Brasil Colônia. Cansados dos maus tratos – que incluíam castração, amputação dos seios e emparedamento de gente viva – eles fugiam e formavam os quilombos, aldeias encravadas nas matas brasileiras, onde tentavam reconstituir a vida que levavam na África.

Foi nesse clima tenso de rebeliões, revoltas e idéias novas que as divindades africanas chegaram ao Brasil, encarnadas no corpo e na fé do povo iorubá. Esses negros, que viajaram para cá amontoados nos porões dos fétidos navios negreiros, foram tratados e vendidos como animais, a peso de ouro, nos locais onde desembarcaram – Rio, Recife e Salvador. E no entanto, não deixaram de expressar sua devoção aos orixás e cultuá-los nas fazendas para onde foram conduzidos.

Aos domingos e dias santificados, reuniam-se em festas que aos senhores pareciam danças inocentes e alegres batuques. Na verdade, ali estava nascendo o Candomblé brasileiro. Para não levantar suspeitas nem atrair a ira dos senhores católicos, os negros associaram cada orixá a um santo da Igreja Romana. Jesus e alguns santos católicos chegaram mesmo a ser incorporados à religião africana, numa prática que ficou conhecida como sincretismo religioso.

Mas as diferenças entre cristianismo e candomblé são profundas. No candomblé não há bem e mal, e sim qualidades e defeitos que devem ser respeitados por expressarem aspectos dos orixás. E em vez de um só Deus, autoridade suprema, a religião africana tem vários orixás. Os de maior poder assumem formas diferentes, aparecem ora como velho, ora como novo, às vezes como rei, etc.

Essas entidades vivem no órun, reino sobrenatural refletido no aiyé, nosso mundo material. Aqui elas se manifestam na natureza e nos seres humanos, que herdam suas características físicas e psicológicas.

Respeitar os atributos dos orixás e homenageá-los regularmente, segundo o candomblé, traz ao homem força e saúde para viver as infinitas encarnações que lhe estão reservadas na planeta Terra.

Todas as divindades negras, que chegaram aqui para aliviar o sofrimento dos escravos africanos, também são associadas aos quatro elementos: o Ar, a Terra, a Água e o Fogo, por isso, os orixás contém toda a magia que comandam as forças da natureza.

É possivel ter Espiritualidade sem Religião? Qual a resposta para a busca da Felicidade? Qual o caminho da Felicidade?...

Postulados sobre a Verdade



1. Deus é Vida em Energia. Deus é Espírito. Deus é Mente. Deus é a única força que controla a vida, o espírito e a mente.

2. Deus está dentro de você e de todos os seres vivos. Isso quer dizer que cada ser vivo é uma representação única da identidade de Deus – mente, espírito e vida.

3. Nada temos além do tempo e ele está a nosso favor. É por isso que continuamos a ser presenteados com a oportunidade de repetir e de recriar nossas vidas.

4. Deus não nos castiga. Somos nós que nos castigamos com a culpa, a vergonha e o medo, quando desconhecemos nossa natureza inerentemente divina.

5. Há uma Ordem Divina para tudo na vida. É por esse motivo que o local onde você se encontra em qualquer momento é exatamente onde você deveria estar.

6. A vida é o desdobramento de experiências que foram projetadas para nos fazer tomar consciência do funcionamento dos princípios universais, às vezes chamados de leis naturais. Quando temos consciência de que esses princípios estão em funcionamento e procuramos viver em harmonia com eles, fica fácil compreender as experiências pelas quais passamos na vida.

7. Recebemos a graça de Deus sob forma de abundância, paz, alegria, bem-estar e recebemos o amor em função do que pensamos, sentimos e acreditamos com relação a vida, a nós mesmos e ao Divino.

8. Nossas vidas são o reflexo de nossas escolhas conscientes e inconscientes. Quando não escolhemos, vivemos à revelia.

9. Todos nós nascemos para cumprir um objetivo divino e temos tudo aquilo de que precisamos para cumprir esse objetivo. O fundamental é descobrir qual é a verdade e o sentido que sustenta os nossos atos, pensamentos e comportamentos.

Referência: VANZANT, Iyanla - "Um Dia Minha Alma se Abriu Por Inteiro"

12.3.10

"Deus não tem nenhuma religião." (Mahatma Gandhi)


(Mahatma Gandhi - 02.10.1869 - 30.01.1948)

Namastê



“...Namastê traz o Sagrado para dentro de cada ser humano, afirmando que Deus não está no céu, num templo ou mesmo na natureza.

Deus está em tudo, em cada um de nós e qualquer dissociação da imagem do divino da nossa é inútil.”

11.3.10

"Sejam seu próprio Guru, seu próprio mestre, a lâmpada existe dentro de vocês mesmos. Acendam-na e prossigam sem temor."


(Sathya Sai Baba 23.11.1926)

Religião Impede Religiosidade


(Rajneesh Chandra Mohan Jain - Osho 11.12.1931-19.01.1990)

"A religião o impede de ser religioso. Ela o envia para os mosteiros, para os templos, para as igrejas. Ela ensina você a rezar para um deus hipotético com o qual você nunca encontrou, com o qual ninguém jamais encontrou.

O verdadeiro templo está por toda a sua volta, sob as estrelas, sob a verde folhagem das árvores, ao lado do oceano. O verdadeiro templo está por toda a volta e o verdadeiro deus nada mais é que o fenômeno vivo e consciente dentro de você.

Onde houver vida, onde houver consciência, ali está deus. E quando você chegar à experiência máxima de consciência, você se torna um deus. É direito natural de todo mundo tornar-se um deus, não adorar Deus, mas tornar-se um deus."

25.1.10

Lamento pelo Haiti


(Leonardo Boff 14.12.1938)

Há uma via-sacra de sofrimento com estações que nunca acabam no pequeno e pobre país do Haiti. Sofrimento no corpo, na alma, no coração, na mente assaltada por fantasmas de pânico e morte. Há também muito sofrimento em todos que não perderam o senso mínimo de humanidade e de solidariedade. Dessa compaixão universal nasce uma misteriosa comunidade que anula diferenças, religiões, ideologias que antes nos separavam e nos dividiam. Agora só conta a comum humanitas absurdamente maltratada e que deve ser socorrida.

Em cada haitiano que sofre soterrado ou que morre de sede e de fome, morremos um pouco também todos nós junto com eles. Finalmente somos irmãos e irmãs da única e mesma família humana. Como não sofrer?

Mas há também um sofrimento profundo e dilacerante nas pessoas de fé que proclamam que Deus é Pai e Mãe de bondade e de amor. Como continuar a crer? Queixosos nos perguntamos: ``Deus, onde estavas quando se formou aquele tremor raso que dizimou os teus filhos e filhas mais pobres e sofridos de todo o extremo Ocidente? Por que não intervieste? Não és o Criador da Terra com seus continentes e suas placas tectônicas? Não és Pai e Mãe de ternura, especialmente, daqueles que são como teu Filho Jesus os injustamente crucificados da história? Por quê?``

Esse silêncio de Deus é aterrador porque não tem resposta. Por mais que gênios como Jó, Buda, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Leibniz e outros tivessem arquitetado argumentos para isentar Deus e esclarecer a dor, nem por isso a dor desaparece e a tragédia deixa de existir. A compreensão da dor não suspende a dor, assim como ouvir receitas culinárias não mata a fome. O próprio Jesus não foi poupado da angústia do sofrimento. Do alto da cruz lançou um brado lancinante ao céu, queixando-se: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"

Damos razão a Jó, com ``amigos`` que lhe queriam explicar o sentido de sua dor: ``Vós não sois senão charlatães, não sois senão médicos de mentira; se ao menos vos calásseis, os homens tomar-vos-iam por sábios``. Mas não podemos calar. A dor é demasiada e a noite, tenebrosa. Precisamos de alguma luz.

Mesmo sem luz, continuamos a crer com o coração partido, porque estamos convencidos de que o caos e a tragédia não podem ter a última palavra. Deus é tão poderoso que pode tirar um bem do mal. Apenas não sabemos como. Esperançosos, fazemos uma aposta nesta possibilidade que não deixa nossas lágrimas serem vãs. Ademais, cremos que Deus pode ser aquilo que nós não compreendemos. Acima da razão que quer explicações, há o mistério que pede silêncio e reverência. Ele esconde o sentido secreto de todos os eventos também daqueles trágicos.

Identifico-me com o poema de um grande argentino que perdeu um filho na repressão militar: Juan Gelman:

"Pai, desce dos céus, esqueci as orações que me ensinou minha avó, pobrezinha, ela agora repousa, não tem mais que lavar, limpar, não tem mais que preocupar-se, andando o dia todo atrás da roupa, não tem mais que velar de noite, penosamente, rezar, pedir-te coisas, resmungando docemente.

``Pai, desce dos céus, se estás, desce, então, pois morro de fome nesta esquina, não sei para que serve haver nascido, olho as mãos inchadas, não tem trabalho, não tem, desce um pouco, contempla isto que sou, este sapato roto, esta angústia, este estômago vazio, esta cidade sem pão para meus dentes, a febre, cavando-me a carne, este dormir assim, sob a chuva, castigado pelo frio, perseguido.

`Te digo que não entendo, Pai, desce, toca-me a alma, toca-me o coração, eu não roubei, nem assassinei, fui criança e em troca me golpeiam e golpeiam, te digo que não entendo, Pai, desce, se estás, pois busco resignação em mim e não tenho e vou encher-me de raiva e estou disposto a brigar e vou gritar até estourar o pescoço de sangue, porque não posso mais, tenho rins, e sou um homem, desce.

"Que fizeram de tua criatura, Pai? Um animal furioso que mastiga a pedra da rua? Pai, desce".

Que o Pai desça sobre os haitianos com seu amor.

19.1.10

MONOGRAFIA

PORQUE A INFINITUDE DE DEUS INVIABILIZA A FINITUDE DO HOMEM, N'A ESSÊNCIA DO CRISTIANISMO , EM LUIDWIG FEUERBACH

Curso Licenciatura em Filosofia
UECE - Universidade Estadual do Ceará

17.1.10

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho primeiramente a Dona Mãe, Odete Soares, pelo seu amor incondicional, exemplo de firmeza e serenidade diante das alegrias e desafios vivenciados e aos meus filhos Marina e Maurício, por terem sido, de diferentes formas, estímulos fundamentais para que eu levasse até o fim esta empreitada, vindo a descobrir um pouco mais sobre o sentido da minha missão. In memoriam, dedico a Aloísio Nunes Rodrigues, por ter me instigado, intuitiva e sabiamente, o caminho da Filosofia. De coração, dedico à todas e todos que foram compreendendo ou sentindo minhas necessidades e me ajudando a percorrer o caminho...

AGRADECIMENTO

Gratidão eterna, à Mestra, Professora e Orientadora Eliana Sales Paiva pela empatia, simpatia, confiança, paciência, carinho, amizade, sabedoria, humanidade, amor e compromisso filosófico ao multiplicar seus conhecimentos. Muito grata por ter, ao longo dessa jornada, me incentivado a não somente “pensar” que podia, mas, principalmente, a “sentir” que seria capaz de realizar muito mais...

BASEADO NO LIVRO




RESUMO

A presente Monografia discorre através do pensamento crítico do filósofo Ludwig Feuerbach, analisado na obra A Essência do Cristianismo, onde desenvolve a idéia do equívoco que é a plenitude de Deus e o quanto tal conceito acaba por dificultar o projeto de um homem pleno e livre. Para tanto procura demonstrar o quanto a alienação religiosa compromete a visão do homem de si mesmo, fazendo com que se sinta imperfeito e cada vez mais distante da sua própria essência, diante da onipotência e grandiosidade do Ser perfeito que é Deus. Somente a partir de um investimento na consciência de finitude e limites do homem é que se torna possível provar que a unidade entre o finito e o infinito, não se realizam no Absoluto, mas no próprio homem. Com isso Feuerbach procura demonstrar que o homem é o Deus dele mesmo e que todo pensamento do homem sobre Deus é pensamento sobre o próprio homem. Para tanto, o presente estudo foi dividido em três capítulos: 1° Influências recebidas e geradas, 2° Resenha da obra A Essência do Cristianismo e 3° A plenitude de Deus e a questão da inviabilidade da finitude do homem.

PALAVRAS-CHAVES: Infinitude, Antropologia e Alienação.

SUMÁRIO ORIGINAL

Resumo
Introdução
CAPÍTULO 1
Influências recebidas e geradas
1.1. Influências recebidas
A Filosofia – Max Stirner e Hegel
A Teologia – Bauer
1.2. Influências geradas
Alienação – Marx e Engels
CAPÍTULO 2
Resenha da Obra
2.1. A Antropologia como predicado da essência do sujeito finito
2.2. As distinções entre os predicados antropológicos e teológicos como essência de Deus infinito
CAPÍTULO 3
Porque a plenitude de Deus inviabiliza a finitude do homem
3.1. Infinitude de Deus x Finitude Humana
3.2. Teologia x Antropologia
3.3. Porque a plenitude de Deus inviabiliza a finitude do homem
Conclusão
Bibliografia

QUE É A RELIGIÃO?


Ludwig Feuerbach
(29.07.1804 - 13.09.1872)

"O solene desvelar dos tesouros ocultos do homem,
a revelação dos seus pensamentos íntimos,
a confissão pública dos seus segredos de amor. "

"Como forem os pensamentos e as disposições do homem,
assim será o seu Deus;
quanto valor tiver um homem,
exatamente isto e não mais, será o valor do seu deus.
Consciência de deus é autoconsciência,
conhecimento de deus é autoconhecimento ".

"Deus é a mais alta subjetividade do homem,
abstraída de si mesmo. "

"Este é o mistério da religião: o homem projeta o seu ser na objetividade e então se transforma a si mesmo num objeto face a esta imagem de si mesmo, assim convertida em sujeito".


(Ludwig Feuerbach - A Essência do Cristianismo)

A REDE DE PALAVRAS


Rubem Alves - (15.09.1933)
Comentador Feuerbach

Sabia que a religião é uma linguagem?
Um jeito de falar sobre o mundo...
Em tudo, a presença da esperança e do sentido...
Religião é tapeçaria que a esperança constrói com palavras.
E sobre estas redes as pessoas se deitam.
É. Deitam-se sobre palavras amarradas umas nas outras.
Como é que as palavras se amarram?
É simples. Com o desejo.
Só que, às vezes, as redes de amor viram mortalhas de medo.
Redes que podem falar de vida e podem falar de morte.
E tudo se faz com as palavras e o desejo.
Por isto, para se entender a religião,
É necessário entender o caminho da linguagem.

“...e havia trevas sobre a face do abismo e um vento impetuoso soprava a superfície das águas. E disse deus: ‘- Haja luz.’ E houve luz...”

“No princípio era a Palavra.”


(Rubem Alves, O Suspiro dos Oprimidos)

INTRODUÇÃO

Neste trabalho de Monografia apresentamos os traços fundamentais da crítica de Ludwig Feuerbach ao fenômeno da religião, sobretudo na forma como conduz seus argumentos sobre a idéia de Deus. Com o objetivo de demonstrar que a teologia deve ser destruída em favor da antropologia, procuramos discorrer na maneira como o autor reduz os atributos divinos da teologia em atributos humanos da antropologia, não de uma forma simplesmente cética, mas de maneira rigorosa, profunda e crítica.

Em Feuerbach vamos encontrar a primeira crítica que a filosofia faz à religião como doutrina. Tarefa que, aliás, acabou por comprometer sua carreira para o resto da vida. Na obra A Essência do Cristianismo ele procura desconstruir a teologia para formar a antropologia, procurando demonstrar que a idéia de um Deus pleno à luz da teologia revela a existência de um ser perfeito, transcendente, onipotente, universal, infinito e absoluto que o homem não é, nem pode ser. Já a antropologia, um conhecimento sistemático a respeito do homem, vai demonstrar que a finitude das capacidades humanas reside exatamente no real limitado, que a plenitude de Deus gera um ser humano pecador e sem sentido. Por isso, desconstruir a teologia em Feuerbach, significa demonstrar as falhas dessa idéia quando relacionada ao homem e o equívoco desta noção universalista, procurando provar através da desmitificação da teoria religiosa que a absolutidade de Deus só esvaece o homem.

A necessidade de abordar o pensamento deste autor se deu não só pelo fato de constatarmos uma lacuna no tocante a estudos críticos sobre seu pensamento na bibliografia filosófica brasileira, mas também, e principalmente, pela sua relevância num momento de importante virada da maneira de filosofar no Ocidente, marcando a ruptura com os sistemas idealistas dos séculos XVIII e XIX.

Feuerbach é, geralmente, conhecido por sua crítica filosófica a religião e ao cristianismo, como podemos constatar nas suas principais obras: A Essência do Cristianismo e Preleções sobre a Essência da Religião. Além dessas duas publicou: "Pensamento sobre a morte e sobre a imortalidade" (1830); "Crítica à filosofia hegeliana" (1839); "Teses provisórias para a reforma da filosofia" (1843); "Princípios da filosofia do futuro" (1844); "A essência da religião" (1845); "Teologia segundo as fontes da antiguidade clássica judaica-cristã" (1857); "Divindade, liberdade e imortalidade do ponto de vista da antropologia" (1866); "Espiritualismo e materialismo" (1866); "O eudemonismo" – obra póstuma.

Apesar de não termos por objetivo aqui abordar detidamente a história da recepção do pensamento feuerbachiano, observamos nas pesquisas realizadas sobre Feuerbach, que sua obra na maioria das vezes é considerada somente, ou em relação à filosofia hegeliana ou na sua relação com o pensamento de Marx. A originalidade e a autonomia da filosofia de Feuerbach ficaram praticamente esquecidas e sua filosofia tratada apenas como passagem do idealismo de Hegel para o materialismo de Marx. No entanto, o que podemos constatar também em nossas pesquisas, é que Feuerbach ocupa uma posição muito especial na historia da filosofia, na medida em que marca, no século XIX, a ruptura com a especulação, especialmente com a filosofia de Hegel, vindo a influenciar profundamente o pensamento moderno.

A questão de Deus em todos os tempos, sempre interessou ao homem. Ter escolhido para Monografia de final do curso de Licenciatura em Filosofia uma obra que abordasse a questão da religião, foi algo muito significativo para mim, pois aqui tive a oportunidade de combinar os interesses do curso com meus interesses intelectuais particulares. Neste trabalho de pesquisa para a compreensão do processo feuerbachiano de transformação da teologia em antropologia, pude encontrar uma grande afinidade com pensamentos que sempre me interessaram aprofundar, relacionados ao problema de Deus e da religião, como por exemplo, a razão de ser da necessidade do homem de buscar incessantemente por algo além de si mesmo, muitas vezes com isso negando a sua própria divindade.

Por isso, o título-questão deste trabalho - Por que a plenitude de Deus inviabiliza a finitude do homem, na obra A Essência do Cristianismo, de Ludwig Feuerbach. Aqui, pretendo evocar todas as significações possíveis do ponto de vista deste autor para demonstrar que a infinitude de Deus e a potencialização do fenômeno religioso pelo homem, torna inexeqüível a sua tarefa finita. Pela dificuldade de reconhecer em si mesmo a existência de uma essência positiva e infinita, esse homem acaba por transformar-se num ser fraco, pecador, sem sentido e alienado diante de algo maior e mais poderoso que ele, um ser em quem não admite a possibilidade de equiparar-se.

“A Essência do Cristianismo contém uma crítica radical da teologia. Mais do que isto, ela contém uma “demitologização” das pretensões teóricas da religião. Como, portanto, justificar a nossa afirmação anterior, de que Feuerbach era um apaixonado pela religião? Ele mesmo nos dá a resposta. Sua intenção não era destruir, mas redescobrir; não silenciar a voz da religião, como ilusão ou quimera, mas oferecer um código que nos permitisse entender os seus segredos”. [1]

Feuerbach considera que sua obra se propõe ao desenvolvimento de uma nova filosofia, uma filosofia que seja fiel ao homem e não a uma escola ou corrente. Para tanto adota como objeto principal a religião e, em particular, o cristianismo. Por considerar que a religião é a essência imediata do homem, e que, além disso, contém toda uma simbologia capaz de explica-la, é através dela que procura desvendar os tesouros escondidos no mais profundo da alma humana, principalmente com a finalidade de reduzir atributos divinos da teologia a atributos humanos da antropologia.

A questão da alienação é um ponto bastante relevante para a compreensão do fenômeno religioso em Feuerbach. O autor considera que o êxtase e o arrebatamento religiosos seriam as formas mais intensas de manifestações da alienação humana. A alienação religiosa faz com que o homem real não seja pleno, coisa que só é possível a partir de um investimento no seu ser finito. Segundo Feuerbach há uma unidade entre o finito e o infinito, essa unidade não se realiza em Deus ou na Idéia Absoluta, mas sim no homem, em um homem que não pode ser reduzido a puro pensamento, mas que deve ser considerado em sua totalidade, em sua naturalidade e em sua sociabilidade.

Sabemos que a religião sempre desempenhou um papel fundamental na história do homem concreto. O próprio autor defende a idéia de que devemos procurar nos entender como um todo. No momento em que isso ocorrer, ou seja, quando aprendemos a nos relacionar com a nossa própria essência, nesse instante, podemos compreender outras possibilidades de relações existentes no próprio homem.

“A religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos íntimos, a confissão pública dos seus segredos de amor.”[2]

O homem desloca o seu ser para fora de si antes de encontrá-lo em si: e esse encontro, essa aberta confissão ou admissão de que a consciência de Deus nada mais é do que a consciência da espécie acaba por consignar que de fato, todas as qualificações do ser divino são qualificações do ser humano - o ser divino é unicamente o ser do homem libertado dos limites do indivíduo, isto é, dos limites da corporeidade e da realidade, mas objetivado, ou seja, contemplado e adorado como outro ser, diferente dele. Religião é o comportamento do homem perante seu próprio infinito. Nisso está a verdade. Por outro lado, a falsidade da religião está em o homem tornar, independente de si mesmo, o seu próprio ser infinito, separando-o e opondo-o como diferente de si, produzindo a bipolaridade Deus-homem, alienando assim o último, ou seja, empobrecendo-o. Tudo isso Feuerbach prova sob o argumento de que o homem é o Deus dele mesmo, que todo pensamento sobre Deus é pensamento a respeito do próprio homem: “O ser absoluto, o Deus do homem é o próprio ser do homem”.

Por isso escolhi o aprofundamento na obra de Feuerbach neste trabalho de Monografia, para tentarmos compreender, conduzidos pelos seus argumentos, a razão de ser do homem necessitar tanto da idéia de divindade, e somente a partir daí, buscar se tornar homem e realizar-se enquanto ser. Para tanto, este estudo foi dividido em três capítulos: 1° Influências recebidas e geradas, 2° Resenha da obra A Essência do Cristianismo e 3° A plenitude de Deus e a questão da inviabilidade da finitude do homem.

[1] RUBEM, Alves, O Suspiro dos Oprimidos, p.37
[2] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 56

CAPÍTULO 1 - INFLUÊNCIAS

Este capítulo tem como objetivo contextualizar a obra de Feuerbach, A Essência do Cristianismo, em relação ao momento do seu surgimento, dentro do movimento filosófico cultural do período de transição compreendido entre uma corrente de pensamento de concepção idealista e outra que conduziria ao materialismo histórico. Aqui procuramos expor as principais concepções em torno da teoria feuerbachiana, partindo da filosofia do espírito absoluto de Hegel, passando pela filosofia crítica de Feuerbach e sua demonstração da ilusão que a teologia faz da religião até a teoria da alienação em Marx, este posicionando-se radicalmente contra a religião e rejeitando qualquer hipótese acerca da existência de Deus. Com isso visamos introduzir o leitor ao pensamento de Feuerbach, filosofo que consideramos de importância relevante pela sua contribuição para uma percepção filosófica revolucionária da teologia e de Deus, numa compreensão da religião sem os tradicionais pressupostos dogmáticos e por acabar estimulando outras reflexões que conduzam cada um a novos sentidos acerca da sua própria relação com a idéia de Deus.

1.1. INFLUÊNCIAS RECEBIDAS


Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(27.08.1770 - 14.11.1831)

Ludwig Feuerbach nasceu em Landschut, Baviera, no dia 29 de julho de 1804. Em 1823 iniciou, em Heidelberga, o estudo da teologia, passando depois para a filosofia. Em 1824 começou a freqüentar as aulas de Hegel em Berlim. Em 1828 obteve a livre-docência na Universidade de Erlangen, com a dissertação De ratione una, universali, infinita, na qual já começa a desenvolver o seu pensamento em polêmica com Hegel. O caráter independente e o extremismo das suas concepções interromperam a sua carreira acadêmica, mas isto lhe permitiu dedicar-se com maior empenho à reflexão e a redação dos seus escritos. Feuerbach morreu em 13 de setembro de 1872, em Rechenberg, perto de Nuremberga, Alemanha, aos 68 anos.

Todo o pensamento de Feuerbach visa a desconstrução dos conceitos religiosos tradicionais, sem com isso pretender suprimir a religião, que, aliás, ele considera necessária por tornar presentes no homem os seus ideais. O que ele deseja é alertar contra as ilusões causadas pela religião “... especialmente contra a ilusão de se entender o ser no qual se hipostatizam os ideais do homem como se ele não fosse o homem, mas algo que existisse em si mesmo.” [1], o que para Feuerbach é a grande fraqueza da religião, a causa de todo erro e fanatismo.

Inicialmente Feuerbach tornou-se um fervoroso hegeliano, mas acabou distanciando-se do mestre, tendo em vista que a filosofia especulativa de Hegel não rompe com a teologia. Hegel reconhece a verdade da esfera da religião, deixa-a subsistir ao lado da esfera da filosofia, admitindo que a religião exprime, na forma de representação ou imaginação o absoluto que a filosofia consegue apreender na forma de conceito; enquanto Feuerbach em oposição á especulação procura converter a teologia em antropologia sem deixar resíduos, mostrar que não há verdade da religião a não ser pela conversão integral, consciente e voluntária de sua esfera na filosofia e na política. Fazendo do objeto da filosofia “o mais real dos seres” e não “uma essência abstrata”, substituindo o espírito pelo homem real e total, Feuerbach denuncia os equívocos do discurso hegeliano e apresenta-se como filósofo conseqüente e decidido da imanência sem restrições”[2]

Depois da morte de Hegel, a escola hegeliana se dividiu diante do problema da interpretação da doutrina religiosa, nascendo assim a direita e a esquerda[3] hegeliana. Porém nos restringiremos aqui a esquerda hegeliana, com o intuito de explicitar o fio condutor da religião como questão filosófica. Max Stirner, Bruno Bauer, o próprio Feuerbach, Engels e Karl Marx, foram alguns dos discípulos que compuseram a esquerda hegeliana, e que foram convertendo-se de uma concepção idealista para uma compreensão essencialmente materialista da história e de toda a realidade, cada um trazendo a sua contribuição para a transformação da filosofia especulativa.

Max Stirner se opõe a Hegel de modo veemente, destruindo toda a base religiosa do seu pensamento. Em sua principal obra “O único e sua propriedade”, Stirner faz uma crítica radicalmente anti-autoritária e individualista da sociedade prussiana contemporânea bem como à tão citada modernidade da sociedade ocidental. Oferece ainda um vislumbre da existência humana que descreve o ego como uma não-entidade criativa além da linguagem e da realidade, ao contrário do que pregava boa parte da tradição filosófica ocidental. Seu livro proclama que todas as religiões e ideologias se assentam em conceitos vazios, que, após solapados pelos interesses pessoais, egoístas dos indivíduos, revelam sua invalidade. O mesmo é válido às instituições sociais que sustentam estes conceitos, seja o estado, a igreja, o sistema educacional, ou outra instituição que reclame autoridade sobre o indivíduo. Para ele a idéia de um ser supremo é uma criação da mente humana, pois não existe nenhum Deus além, acima e fora do homem. Deus é a própria essência do homem sublimada, pelo qual o homem é capaz de fazer os piores sacrifícios, negando sua liberdade e se submetendo a lei. Para Stirner toda religião é imoral porque submete o homem ao decreto divino e lhe prescreve obediência e resignação. A argumentação de Stirner explora e extende os limites da crítica hegeliana que o autor dirige a seus contemporâneos, principalmente a seus colegas hegelianos, especialmente Feuerbach quando disse que “...este substituíra meramente a palavra Deus pela palavra Homem. Dessa forma, Feuerbach rezaria pelo homem.” Segundo Stirner, “ele não teria deixado de ser hegeliano, porque apenas transpôs o ideal teológico e divino por uma noção abstrata de humanidade.”[4]. Feuerbach num artigo publicado em 1845, em Vierteljahreschrift de Wigand, intitulado “Essência do Cristianismo em sua Relação com O Unico e sua Propriedade”, rebate e trava uma polêmica contra as críticas de Stirner, e, numa outra ocasião escreve a seu irmão dizendo ser Stirner “o autor mais genial e livre que conheci". Apesar de toda a sua crítica à religião, Stirner não chega a fundamentar uma filosofia humanística de fato.

Hegel havia ensinado a seus alunos ver a história do mundo como um processo dialético, ditado e dirigido pelo espírito absoluto ou pela razão implícita dos acontecimentos. Esses se sucederiam segundo uma férrea lógica: tudo o que é fenece em decorrência de sua contradição interna; tudo o que é sobrevive na síntese superior em que tese e antítese se unem. Bruno Bauer, em nome da própria dialética hegeliana, desmantela todas as presunções do pensamento absoluto ao dizer que a dialética exige, com efeito, que o processo do pensamento admita que qualquer afirmação que pretenda impor-se como verdadeira em sentido absoluto, resulte, por isso mesmo falsa: o próprio processo do pensamento se encarrega de anulá-la. Tudo é relativo. O absoluto e a eternidade de Deus são substituídos pela perene mutabilidade e infinita variedade pelas quais a natureza humana demonstra a sua inexaurível capacidade. O Homem é o novo Deus do homem: a humanidade é o único ideal legitimo dos indivíduos humanos.

Hegel havia afirmado energicamente que a religião e a filosofia tinham o mesmo conteúdo, mas também proclamou a distinção entre uma e outra, demonstrando que enquanto a religião exprime o conteúdo na forma de representação, a filosofia exprime-o na forma de conceito:“É verdade que Hegel não se tinha pronunciado sobre os problemas especificamente teológicos, como os de Deus, da encarnação e da imortalidade da alma; no entanto, é preciso reconhecer que os princípios da sua doutrina não só não exigiam, como de certo modo, não lhe permitiam que se pronunciasse sobre o assunto. Com efeito, por outro lado, Hegel reconhecia à religião histórica plena validade no âmbito da sua forma, portanto no campo da representação; por outro, sustentava que o conteúdo da religião devia ser retomado pela filosofia e integrado ao plano dos conceitos, onde esses problemas deixam de ter o mesmo significado. Todavia, Hegel tinha apresentado a sua filosofia como justificação especulativa das realizações históricas do espírito do povo: a Igreja e o Estado; assim se explica a posição de muitos discípulos em manterem-se fiéis ao espírito do mestre, utilizando a sua filosofia para justificarem as crenças religiosas tradicionais.”[5]

Feuerbach retoma com mais ordem e incisividade as críticas de Stirner e Bauer a Hegel no terreno da religião, contribuindo, deste modo, para a plena realização da “reformulação” materialista do idealismo. N’A Essência do Cristianismo, afirma contra Hegel que “o fundamento da verdadeira filosofia não é por o finito no infinito, mas o infinito no finito”[6], isto é, que a tarefa da filosofia não é provar que o homem é produzido por Deus, mas, inversamente, que Deus é produzido pelo homem, ou seja, “não foi a idéia (Deus) que criou o homem, mas o homem que criou a idéia (Deus)”[7].

Feuerbach encontrou no hegelianismo uma filosofia que permite pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou o gênero. O que o levará a se distanciar do sistema hegeliano é a ambigüidade com que este apresenta a religião. Hegel e ainda mais os jovens hegelianos tendem a deixar religião e filosofia lado a lado em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde logo de pensar o gênero ou a essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num ser transcendente um desconhecimento da verdadeira natureza humana e de sua relação com o divino que a caracteriza.

Num contexto mais amplo, a obra de Feuerbach se situa no longo processo de esclarecimento religioso, iniciado com o renascimento italiano e levado a cabo pelo iluminismo europeu no séc. XVIII. Se a religião sem a filosofia leva ao mundo fantástico das representações mais supersticiosas, a filosofia da religião peca por sacrificar a fantasia religiosa no altar da razão, vendo somente o momento racional em toda representação religiosa.

Feuerbach critica assim, o procedimento filosófico comum da modernidade, que consiste em se aproximar da religião, quando isto é feito, com o intuito de descobrir um núcleo de racionalidade na mesma ou, mais genericamente, de estabelecer a relação que ainda é possível entre uma verdade seguramente conhecida pela razão e uma verdade pretensamente revelada. Este procedimento acaba por reduzir a religião a algo que ela não é e nem pode ser, fazendo dela um veículo fraco e distorcido de expressão das verdades da razão. No fim do processo de esclarecimento, a religião já não encontra um lugar adequado no mundo das representações, tendo finalmente soado a hora de seu ocaso. O pensamento que busca salvar a religião, reservando-lhe um lugar delineado e fixado pela razão, não salva nada de essencial, pois “não é aquilo em que a fé concorda com a razão geral que fundamenta a essência da fé, mas sim aquilo através do que ela diverge da razão.”[8] Se a razão é o lugar do universal, a religião é o lugar do particular, e, sobretudo, se a razão se esgota no pensamento do universal em conceitos, a fé religiosa dela se diferencia por se apresentar em imagens, uma descrição perfeitamente hegeliana do distintivo da religião. Feuerbach, no entanto, propõe-se tratar das imagens religiosas como imagens, evitando reduzi-las a pensamentos, como teria feito Hegel em sua superação filosófica da religião. “Neste livro não se tornaram as imagens da religião nem pensamentos – pelo menos no sentido da filosofia especulativa da religião – nem realidades, mas são consideradas como imagens – isto é, a teologia não é tratada nem como uma pragmatologia mística, como o é pela mitologia cristã; nem como ontologia, como o é pela filosofia especulativa da religião, mas como uma patologia psíquica.”[9]

Ao desafio moderno de um mundo e de um homem sem Deus e sem divino, Feuerbach responde com uma divinização do humano. Por isso, sua relação com a religião nunca será meramente negativa, mas sempre crítica, procurando separar o que nela há de verdadeiro daquilo que é falso. Este processo apóia-se em última instância no princípio hegeliano, segundo o qual a verdadeira religião manifesta o espírito humano numa forma inferior de representação, cabendo à filosofia chegar ao mesmo com a forma conceitual superior de representação, ou dito à maneira de Feuerbach: “A religião é a primeira autoconsciência do homem. Sagradas são as religiões precisamente por serem a transmissão da primeira consciência do homem.”[10] Feuerbach antropologiza não só o espírito hegeliano, mas, e de forma quase enciclopédica, as representações religiosas em geral. Contudo, seu processo de antropologização não significa uma dessacralização do universo, como no caso do iluminismo, mas antes redunda numa sacralização do próprio homem. Se em Hegel a dignidade do homem resulta de ser ele a consciência de Deus, para Feuerbach a consciência que o homem tem de si mesmo é algo divino.

[1] MONDIN, Batista, Curso de Filosofia,vol. III, p.94
[2] HUISMAN, Denis, Dicionário dos Filósofos, p.369
[3] MONDIN, Batista, Curso de Filosofia,vol. III, p.47
Os hegelianos da direita, J.K.F. Rosenkranz e G. Herdermann, alterando a doutrina do mestre, procuram o acordo com a ortodoxia e com a fé cristã tradicional, salvando a imortalidade da alma individual, a união da natureza divina e humana na pessoa de cristo, a personalidade e a transcendência de Deus, etc. Os hegelianos de esquerda, L. Feuerbach, K. Marx e outros, desenvolvem a filosofia de Hegel como radical negação dos fenômenos sobrenaturais da vida religiosa. A direita teve vida breve, ao passo que a esquerda se afirma amplamente.
[4] DUCLÓS, Miguel, Texto A Manutenção do Pensamento de Marx, E-mail: miguel@consciencia.org,
[5] Cf. ABBAGNANO, Nicola - História da Filosofia – vol IX, pág 223.Vide:: AQUINO,Marcelo F. de, O Conceito da Religião em Hegel, São Paulo, Editora Loyola, 1ª ed., 1989- Filosofia 10= Coleção dirigida pela Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus. Vide: VAZ, Henrique C. de Lima – Escritos de Filosofia: problemas de Fronteira, editora Loyola, 1ª ed. São Paulo, 1980 – Filosofia 3 = Coleção dirigida pela Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus. VAZ, Henrique C. de Lima – Escritos de Filosofia II : Ética e Cultura, editora Loyola,1ª ed. São Paulo, 1988, Filosofia 8, anexo VI: Cultura e Religião, pág 280 à 288
[6] MONDIN, Batista, Curso de Filosofia, Vol. III, p.93
[7] Idem
[8] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 19
[9] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 19
[10] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 309

1.2. INFLUÊNCIAS GERADAS


Karl Marx
(5.05.1818 - 14.03.1883)

A teoria feuerbachiana causou profunda influência na filosofia do século XIX. Os primeiros a se entusiasmarem com ela foram os jovens hegelianos, dentre eles Max Stirner e Karl Marx. Mas a noção materialista de humanismo ateu iria alcançar um reflexo maior no século em que foi proclamada a morte de Deus. Quem mais alto bradou sua morte foi Nietzsche, inicialmente em A Gaia Ciência (1882) e posteriormente em sua obra-prima Assim Falou Zaratustra (1885). Feuerbach influenciou o teólogo Strauss, o político Arnold Ruge, o socialismo verdadeiro, os vulgarizadores Heinzen, W. Marr, H. Ewerbeck, o biólogo Moleschott, o esteta Hermann Hettner, o poeta Herwegh, o realista Gottfied Keller, Richard Wagner também, quando este escreve A Obra de Arte do Futuro.

Como podemos ver, filosofos e personalidades das mais diversas áreas de atuação se aproveitaram das veredas abertas pela crítica de Feuerbach à religião e à teologia, tornando sua obra fundamental como preparação para a ruptura com a filosofia especulativa hegeliana e abertura da perspectiva tanto dos agitadores políticos quanto dos novos projetos de pensamento filosofico e político, como o de Marx. Para o desenvolvimento do pensamento marxista especialmente, sua obra representa um ponto de virada decisivo, tendo em vista que Feuerbach, nas palavras do próprio Engels constituiu “um membro intermediário entre a filosofia hegeliana e nossa própria concepção”[1], a concepção materialista do mundo.

Marx no inicío adotou alguns conceitos e terminologias de Feuerbach. No primeiro manuscrito de 1844, por exemplo, já trata da questão da alienação. A palavra alienação era um termo que fazia parte do vocabulário de Feuerbach, para quem a religião era considerada uma alienação, por levar o homem a colocar sua essência e sua humanidade num Ser fora de si próprio, no mundo invertido da divindade. Na alienação o homem vira um ser que não se pertence e que adora os ídolos que projeta.

A alienação é um dos temas mais centrais do pensamento filosófico ocidental. Frequentemente, entretanto, não nos damos conta de que este conceito encerra três sentidos bastante distintos. O primeiro deles tem o seu lugar no contexto do discurso político-social. (...) a sociedade só pode ser explicada se, no ato que a fundou, os indivíduos abandonaram os seus projetos individuais, oriundos de suas estruturas biológicas e psicológicas, e se entregaram a uma ordem superior, produto deste próprio ato de renúncia própria. Este ato de abandono da vontade individual em favor de uma vontade coletiva instaurada por meio de um contrato é o que se denomina alienação. (...) O segundo uso do conceito alienação encontra o seu lugar no discurso epistemológico. Contrariamente ao seu uso jurídico, a alienação se refere aqui especificamente aos estados subjetivos de individuos e grupos. Alienado é o indivíduo cujas idéias não constituem conhecimento efetivo do real, mas são antes expressões de estados emocionais individuais e coletivos. (...) Assim, os ídolos de Bacon, a religião em Feuerbach, a ideologia em Marx, a neurose em Freud são expressões de alienação. (...) O terceiro sentido do conceito de alienação encontra o seu lugar nos discursos que buscam compreender a condição humana em toda a sua particularidade emocional e afetiva. (...) Alienação significa, aqui, o caráter ameaçador da realidade externa, tanto de indivíduos quanto de estruturas; significa o movimento de recolhimento subjetivo; significa a artificialidade das regras de operação efetiva pelas quais nos comportamos socialmente. Significa, em última análise, o esfacelamento e a fragmentação da experiência humana, dividida entre uma identidade reprimida e uma funcionalidade imposta. O conceito de alienação tem sido usado com grande frequência para qualificar os fenômenos religiosos. E existe um sentido deste conceito que os próprios teóricos da religião aceitariam. Na verdade, a religião é sempre uma expressão de alienação, “o suspiro da criatura oprimida”, um “protesto contra o sofrimento real... (ALVES, Rubem, O Suspiro dos Oprimidos, p. 31,32,33 e 34).

Mas do entusiasmo inicial com que foi recebida a obra A Essência do Cristianismo, onde todo materialista se considerava feuerbachiano, até a crítica ao pensamento de Feuerbach, não se passou muito tempo. É bem verdade que a crítica de Marx e Engels ao pensamento de Feuerbach nunca foi levada a cabo com a mesma crueldade empregada contra Stirner, por exemplo, mas mesmo assim atinge suas fraquezas fundamentais. Em seu acerto de contas com a filosofia alemã de seu tempo, no livro A Ideologia Alemã, de 1845/46, Marx e Engels tratam Feuerbach como o mais respeitável dentre os jovens hegelianos, como o único que teria feito um progresso no sentido da superação do idealismo hegeliano, na medida em que defendeu a sensibilidade e a materialidade contra pretensões absolutistas do espírito idealista. Consideram que sua tentativa de mostrar todas as representações do sagrado como provenientes do homem teria, no entanto, parado a meio caminho, não chegando a localizar o homem realmente existente “desta forma, ele nunca chega aos homens realmente existentes e atuantes, mas se detém junto ao abstrato “o homem.”[2] Consideram que Feuerbach está mais preocupado com a essência do homem e seu conhecimento do que com os homens que efetivamente existem, agem e constituem seu mundo. Por isso, pode identificar esta essência com a essência divina, na medida em que esta é apenas a mesma essência humana que não se conhece a si mesma de forma consciente, ou como dirá Marx em sua crítica: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração que residisse no interior do indivíduo singular. Em sua efetividade, ela é o conjunto das relações sociais.”[3]

Para Marx, a superação da alienação da consciência religiosa não deveria parar na mera consciência de uma superação da alienação do homem em suas relações reais. Deste homem real, que em sua opinião Feuerbach acaba reconhecendo apenas a sensibilidade e o sentimento, reduzindo as relações essenciais do homem com o homem às relações idealizadas do amor e da amizade. O homem da intuição sensível pensa-se sempre já diante de um mundo dado e acabado, em que ele mesmo aparece não como o homem real da história, mas como a essência humana: “A concepção de Feuerbach do mundo sensível limita-se, por um lado, à mera intuição do mundo e, por outro, ao mero sentimento; ele diz “o homem” em vez de “os homens reais e históricos”.”[4] É o grande mérito de Feuerbach não se contentar com objetos do pensamento, mas buscar objetos sensíveis, abrir a filosofia para a materialidade do mundo; mas sua limitação aos objetos da intuição sensível acaba por prendê-lo aos limites de um mundo que pode ser dado à intuição. Em suas Teses sobre Feuerbach, redigidas em 1845, Marx aponta para a deficiência fundamental do materialismo feuerbachiano: “A deficiência principal de todo materialismo existente até agora (inclusive o feuerbachiano) reside em ter tomado o objeto, a realidade, a sensibilidade tão-somente sob a forma de objeto ou da intuição, mas não como atividade sensível humana, praxis”[5] Não se quebra o círculo vicioso da filosofia contemplativa simplesmente apelando para os sentidos contra a abstração do pensamento, pois a intuição sensível pode muito bem se enquadrar numa nova postura contemplativa, como mostra a moderna ciência. Mesmo tendo encontrado no homem a instância definitiva de toda reflexão filosófica, Feuerbach não rompeu com os limites da contemplação: “Por isso, ele considera na Essência do Cristianismo, só o comportamento teorético como o autenticamente humano, enquanto a praxis é tomada e fixada apenas em sua forma suja e judia de se manifestar. Por isso ele não compreende o significado da atividade “revolucionária”, “prático-crítica.””[6]

Para superar a religião, e “aquele mundo de que é aroma espiritual”, é preciso combinar as “armas da crítica” com a “crítica das armas”. Nesta perspectiva, a missão da Filosofia, que está a serviço da história, tem como objetivo desmascarar a auto-alienação humana em sua forma santificada (a religião) e em suas formas não santificadas (as estruturas de produção, políticas etc). Por isso, a superação da religião não é apenas uma atividade da consciência, como para Feuerbach e Bauer, mas implica na superação da sociedade que a produz. O homem precisa libertar-se teórica e praticamente de suas alienações, a partir das religiosas; pois: “A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize sua relidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.”[7]

Podemos sintetizar que as principais criticas identificadas aos limites do pensamento de Feuerbach são: a manutenção de uma filosofia simplemente contemplativa; o apelo para os sentidos contra a abstração do pensamento; a consideração do comportamento apenas teorético com o objetivo de transformar a consciência do homem, deixando muito a desejar no que se refere a uma atuação mais revolucionária e prático-crítica.

A razão para tais críticas teve fundamento. De fato, Feuerbach recusa-se a participar de qualquer ação política, acreditando que a constituição de uma teoria continuava sendo o essencial. Na verdade, em sua convicção de que o principal para a emancipação dos homens era libertá-los da empresa da religião, Feuerbach via no movimento democrático, socialisa e comunista um meio de realizar esta emancipação, mas considerava que sua participação poderia ser mais eficaz no aprofundamento da crítica à religião. Ele acreditava que as idéias exerceriam pela educação e pela instrução uma influência determinante sobre o desenvolvimento humano. Feuerbach permanecia materialista na sua concepção do mundo, mas era idealista na concepção do desenvolvimento da história. Sua concepção idealista era explicada por sua posição anti-revolucionária, o que o aproximou de uma doutrina social humanista, humanismo este que só pretendia realizar pela via da crítica religiosa. A justificativa do socialismo verdadeiro para a miséria humana era a consciência e não o desenvolvimento do capitalismo como um todo.

Desta concepçao utópica do papel e dos efeitos da concorrência, própria do capitalismo derivou uma solução também utópica que solicitava a abolição da concorrência que supriria o egoísmo e devolveria à humanidade qualidade de vida novamente. É neste sentido que para Feuerbach, a transformação social se operaria por uma associação estreita entre os homens que tornaria possível uma organização racional e humana do trabalho.

A filosofia política de Feuerbach estipula, nas linhas de Hegel, que a ordem social deve ser a objetivação do espírito. Só que, em Feuerbach, não se trata de um Espírito Absoluto, mas do espírito humano, Essência humana e a ordem social objetivada estão em conflito. Por isto esta última deve ser abolida, a fim de se transformar numa expressão do espírito. Onde encontraremos o projeto desta nova ordem a ser construída? Nas aspirações do homem oprimido. E a religião nada mais é que a forma simbólica que tomam estas aspiraçoes. Isto nos levaria a levantar a questão de, se a prioridade do objetivo, em relação ao subjetivo (Marx) ou a prioridade do subjetivo em relação ao objetivo (Feuerbach), não é uma falsa opção. Não seria possível encarar a religião, como realidade espiritual, como expressão de um projeto utópico de superação das condições objetivas, sendo que estas, por sua vez, nos dariam os dados do problema a ser resolvido e, ao mesmo tempo, o instrumental para sua solução? Qualquer solução política que seja nada mais que o desenvolvimento das tendências imanentes numa configuração social objetivamente dada, e que ignore as aspirações e desejos surgidos em resposta a esta mesma situação, continuará a ser insatisfatória. Permanecerá o conflito ente o “princípio do prazer e o princípio da realidade.[8]

[1] ENGELS, Friedrich, Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica Alemã, p.182
[2] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, p. 44
[3] MARX, Karl, Teses sobre Feuerbach, p. 6
[4] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, p. 42
[5] MARX, Karl, Teses sobre Feuerbach, p. 5
[6] Idem
[7] STACCONE, Giuseppe, Filosofia da Religião – O pensamento do homem ocidental e o problema de Deus, p. 119
[8] ALVES, Rubem, O Suspiro dos Oprimidos, p. 50