17.1.10

1.2. INFLUÊNCIAS GERADAS


Karl Marx
(5.05.1818 - 14.03.1883)

A teoria feuerbachiana causou profunda influência na filosofia do século XIX. Os primeiros a se entusiasmarem com ela foram os jovens hegelianos, dentre eles Max Stirner e Karl Marx. Mas a noção materialista de humanismo ateu iria alcançar um reflexo maior no século em que foi proclamada a morte de Deus. Quem mais alto bradou sua morte foi Nietzsche, inicialmente em A Gaia Ciência (1882) e posteriormente em sua obra-prima Assim Falou Zaratustra (1885). Feuerbach influenciou o teólogo Strauss, o político Arnold Ruge, o socialismo verdadeiro, os vulgarizadores Heinzen, W. Marr, H. Ewerbeck, o biólogo Moleschott, o esteta Hermann Hettner, o poeta Herwegh, o realista Gottfied Keller, Richard Wagner também, quando este escreve A Obra de Arte do Futuro.

Como podemos ver, filosofos e personalidades das mais diversas áreas de atuação se aproveitaram das veredas abertas pela crítica de Feuerbach à religião e à teologia, tornando sua obra fundamental como preparação para a ruptura com a filosofia especulativa hegeliana e abertura da perspectiva tanto dos agitadores políticos quanto dos novos projetos de pensamento filosofico e político, como o de Marx. Para o desenvolvimento do pensamento marxista especialmente, sua obra representa um ponto de virada decisivo, tendo em vista que Feuerbach, nas palavras do próprio Engels constituiu “um membro intermediário entre a filosofia hegeliana e nossa própria concepção”[1], a concepção materialista do mundo.

Marx no inicío adotou alguns conceitos e terminologias de Feuerbach. No primeiro manuscrito de 1844, por exemplo, já trata da questão da alienação. A palavra alienação era um termo que fazia parte do vocabulário de Feuerbach, para quem a religião era considerada uma alienação, por levar o homem a colocar sua essência e sua humanidade num Ser fora de si próprio, no mundo invertido da divindade. Na alienação o homem vira um ser que não se pertence e que adora os ídolos que projeta.

A alienação é um dos temas mais centrais do pensamento filosófico ocidental. Frequentemente, entretanto, não nos damos conta de que este conceito encerra três sentidos bastante distintos. O primeiro deles tem o seu lugar no contexto do discurso político-social. (...) a sociedade só pode ser explicada se, no ato que a fundou, os indivíduos abandonaram os seus projetos individuais, oriundos de suas estruturas biológicas e psicológicas, e se entregaram a uma ordem superior, produto deste próprio ato de renúncia própria. Este ato de abandono da vontade individual em favor de uma vontade coletiva instaurada por meio de um contrato é o que se denomina alienação. (...) O segundo uso do conceito alienação encontra o seu lugar no discurso epistemológico. Contrariamente ao seu uso jurídico, a alienação se refere aqui especificamente aos estados subjetivos de individuos e grupos. Alienado é o indivíduo cujas idéias não constituem conhecimento efetivo do real, mas são antes expressões de estados emocionais individuais e coletivos. (...) Assim, os ídolos de Bacon, a religião em Feuerbach, a ideologia em Marx, a neurose em Freud são expressões de alienação. (...) O terceiro sentido do conceito de alienação encontra o seu lugar nos discursos que buscam compreender a condição humana em toda a sua particularidade emocional e afetiva. (...) Alienação significa, aqui, o caráter ameaçador da realidade externa, tanto de indivíduos quanto de estruturas; significa o movimento de recolhimento subjetivo; significa a artificialidade das regras de operação efetiva pelas quais nos comportamos socialmente. Significa, em última análise, o esfacelamento e a fragmentação da experiência humana, dividida entre uma identidade reprimida e uma funcionalidade imposta. O conceito de alienação tem sido usado com grande frequência para qualificar os fenômenos religiosos. E existe um sentido deste conceito que os próprios teóricos da religião aceitariam. Na verdade, a religião é sempre uma expressão de alienação, “o suspiro da criatura oprimida”, um “protesto contra o sofrimento real... (ALVES, Rubem, O Suspiro dos Oprimidos, p. 31,32,33 e 34).

Mas do entusiasmo inicial com que foi recebida a obra A Essência do Cristianismo, onde todo materialista se considerava feuerbachiano, até a crítica ao pensamento de Feuerbach, não se passou muito tempo. É bem verdade que a crítica de Marx e Engels ao pensamento de Feuerbach nunca foi levada a cabo com a mesma crueldade empregada contra Stirner, por exemplo, mas mesmo assim atinge suas fraquezas fundamentais. Em seu acerto de contas com a filosofia alemã de seu tempo, no livro A Ideologia Alemã, de 1845/46, Marx e Engels tratam Feuerbach como o mais respeitável dentre os jovens hegelianos, como o único que teria feito um progresso no sentido da superação do idealismo hegeliano, na medida em que defendeu a sensibilidade e a materialidade contra pretensões absolutistas do espírito idealista. Consideram que sua tentativa de mostrar todas as representações do sagrado como provenientes do homem teria, no entanto, parado a meio caminho, não chegando a localizar o homem realmente existente “desta forma, ele nunca chega aos homens realmente existentes e atuantes, mas se detém junto ao abstrato “o homem.”[2] Consideram que Feuerbach está mais preocupado com a essência do homem e seu conhecimento do que com os homens que efetivamente existem, agem e constituem seu mundo. Por isso, pode identificar esta essência com a essência divina, na medida em que esta é apenas a mesma essência humana que não se conhece a si mesma de forma consciente, ou como dirá Marx em sua crítica: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração que residisse no interior do indivíduo singular. Em sua efetividade, ela é o conjunto das relações sociais.”[3]

Para Marx, a superação da alienação da consciência religiosa não deveria parar na mera consciência de uma superação da alienação do homem em suas relações reais. Deste homem real, que em sua opinião Feuerbach acaba reconhecendo apenas a sensibilidade e o sentimento, reduzindo as relações essenciais do homem com o homem às relações idealizadas do amor e da amizade. O homem da intuição sensível pensa-se sempre já diante de um mundo dado e acabado, em que ele mesmo aparece não como o homem real da história, mas como a essência humana: “A concepção de Feuerbach do mundo sensível limita-se, por um lado, à mera intuição do mundo e, por outro, ao mero sentimento; ele diz “o homem” em vez de “os homens reais e históricos”.”[4] É o grande mérito de Feuerbach não se contentar com objetos do pensamento, mas buscar objetos sensíveis, abrir a filosofia para a materialidade do mundo; mas sua limitação aos objetos da intuição sensível acaba por prendê-lo aos limites de um mundo que pode ser dado à intuição. Em suas Teses sobre Feuerbach, redigidas em 1845, Marx aponta para a deficiência fundamental do materialismo feuerbachiano: “A deficiência principal de todo materialismo existente até agora (inclusive o feuerbachiano) reside em ter tomado o objeto, a realidade, a sensibilidade tão-somente sob a forma de objeto ou da intuição, mas não como atividade sensível humana, praxis”[5] Não se quebra o círculo vicioso da filosofia contemplativa simplesmente apelando para os sentidos contra a abstração do pensamento, pois a intuição sensível pode muito bem se enquadrar numa nova postura contemplativa, como mostra a moderna ciência. Mesmo tendo encontrado no homem a instância definitiva de toda reflexão filosófica, Feuerbach não rompeu com os limites da contemplação: “Por isso, ele considera na Essência do Cristianismo, só o comportamento teorético como o autenticamente humano, enquanto a praxis é tomada e fixada apenas em sua forma suja e judia de se manifestar. Por isso ele não compreende o significado da atividade “revolucionária”, “prático-crítica.””[6]

Para superar a religião, e “aquele mundo de que é aroma espiritual”, é preciso combinar as “armas da crítica” com a “crítica das armas”. Nesta perspectiva, a missão da Filosofia, que está a serviço da história, tem como objetivo desmascarar a auto-alienação humana em sua forma santificada (a religião) e em suas formas não santificadas (as estruturas de produção, políticas etc). Por isso, a superação da religião não é apenas uma atividade da consciência, como para Feuerbach e Bauer, mas implica na superação da sociedade que a produz. O homem precisa libertar-se teórica e praticamente de suas alienações, a partir das religiosas; pois: “A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize sua relidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.”[7]

Podemos sintetizar que as principais criticas identificadas aos limites do pensamento de Feuerbach são: a manutenção de uma filosofia simplemente contemplativa; o apelo para os sentidos contra a abstração do pensamento; a consideração do comportamento apenas teorético com o objetivo de transformar a consciência do homem, deixando muito a desejar no que se refere a uma atuação mais revolucionária e prático-crítica.

A razão para tais críticas teve fundamento. De fato, Feuerbach recusa-se a participar de qualquer ação política, acreditando que a constituição de uma teoria continuava sendo o essencial. Na verdade, em sua convicção de que o principal para a emancipação dos homens era libertá-los da empresa da religião, Feuerbach via no movimento democrático, socialisa e comunista um meio de realizar esta emancipação, mas considerava que sua participação poderia ser mais eficaz no aprofundamento da crítica à religião. Ele acreditava que as idéias exerceriam pela educação e pela instrução uma influência determinante sobre o desenvolvimento humano. Feuerbach permanecia materialista na sua concepção do mundo, mas era idealista na concepção do desenvolvimento da história. Sua concepção idealista era explicada por sua posição anti-revolucionária, o que o aproximou de uma doutrina social humanista, humanismo este que só pretendia realizar pela via da crítica religiosa. A justificativa do socialismo verdadeiro para a miséria humana era a consciência e não o desenvolvimento do capitalismo como um todo.

Desta concepçao utópica do papel e dos efeitos da concorrência, própria do capitalismo derivou uma solução também utópica que solicitava a abolição da concorrência que supriria o egoísmo e devolveria à humanidade qualidade de vida novamente. É neste sentido que para Feuerbach, a transformação social se operaria por uma associação estreita entre os homens que tornaria possível uma organização racional e humana do trabalho.

A filosofia política de Feuerbach estipula, nas linhas de Hegel, que a ordem social deve ser a objetivação do espírito. Só que, em Feuerbach, não se trata de um Espírito Absoluto, mas do espírito humano, Essência humana e a ordem social objetivada estão em conflito. Por isto esta última deve ser abolida, a fim de se transformar numa expressão do espírito. Onde encontraremos o projeto desta nova ordem a ser construída? Nas aspirações do homem oprimido. E a religião nada mais é que a forma simbólica que tomam estas aspiraçoes. Isto nos levaria a levantar a questão de, se a prioridade do objetivo, em relação ao subjetivo (Marx) ou a prioridade do subjetivo em relação ao objetivo (Feuerbach), não é uma falsa opção. Não seria possível encarar a religião, como realidade espiritual, como expressão de um projeto utópico de superação das condições objetivas, sendo que estas, por sua vez, nos dariam os dados do problema a ser resolvido e, ao mesmo tempo, o instrumental para sua solução? Qualquer solução política que seja nada mais que o desenvolvimento das tendências imanentes numa configuração social objetivamente dada, e que ignore as aspirações e desejos surgidos em resposta a esta mesma situação, continuará a ser insatisfatória. Permanecerá o conflito ente o “princípio do prazer e o princípio da realidade.[8]

[1] ENGELS, Friedrich, Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica Alemã, p.182
[2] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, p. 44
[3] MARX, Karl, Teses sobre Feuerbach, p. 6
[4] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, p. 42
[5] MARX, Karl, Teses sobre Feuerbach, p. 5
[6] Idem
[7] STACCONE, Giuseppe, Filosofia da Religião – O pensamento do homem ocidental e o problema de Deus, p. 119
[8] ALVES, Rubem, O Suspiro dos Oprimidos, p. 50

Nenhum comentário:

Postar um comentário