17.1.10

3.3. PORQUE A PLENITUDE DE DEUS INVIABILIZA A FINITUDE DO HOMEM

A principal preocupação de Feuerbach com o fenômeno religioso foi no sentido de estabelecer uma crítica a religião por identificar nela uma profunda carência da consciência de si do homem. Ele percebe que entre o humano e o divino não há uma oposição de fato, real, mas sim ilusória. A contradição fundamental está no homem, porque não há uma essência religiosa. A religião é uma abstração das limitações da vida humana, corporal. Não há qualidade em si na vida divina. O homem em Feuerbach é um ser que teme a sua finitude e as limitações naturais que sofre todo ser humano. O homem possui uma essência “infinitamente diversa, infinitamente determinável, mas exatamente por isso sensorial”[1] O homem como homem sensorial, pleno de sentidos, é um ser rico em determinações: o engano do homem religioso é criar um ser espiritual e, portanto, abstrato. Esse homem religioso teme ser um homem finito, determinado. O que ele reconhece no ser divino são as qualidades de sua própria essência, que Feuerbach denomina “qualidade essencial do próprio homem”, criando uma “contemplação essencial” que o anima e o determina de fora.

O mistério dos vários atributos divinos encontram-se no próprio homem em sua essência infinitamente diversa, determinável e sensorial. É através dos sentidos que o ser humano é concebido como ser infinito, pleno de determinações. Dessa forma, podemos conceber a religião como uma cisão no homem: o ser divino é aquilo que o homem não é. Essa cisão entre o ser divino e o homem representa uma cisão do homem com sua própria essência oculta. O homem expressa essa essência oculta através da religião. Por meio dela podemos encontrar um conteúdo humano objetivado.

Na análise que Feuerbach vai fazendo sobre a simbologia presente no fenômeno da religião, o conteúdo objetivado das inúmeras crenças existentes vão sendo explicados de forma bem racional. Sobre isso, um exemplo muito curioso é quando analisa o papel simbólico da água do vinho e do pão no cristianismo. A água é um produto natural indispensável ao homem, já o vinho e o pão são produtos naturais por ele transformados, mas também importantes para sua sobrevivência. Assim, ele comenta: “adoramos na água a pura energia natural (...) no vinho e pão a energia sobrenatural do espírito, da consciência, do homem.”[2] A análise antropológica desse conteúdo religioso, neste exemplo, indica que na água expressamos nossa gratidão à natureza, no pão e no vinho nossa gratidão ao homem. Mas, Feuerbach vai além dessa constatação quando coloca que na adoração do pão e do vinho, concluímos que “o homem é o Deus e o redentor do homem”[3]Quando se toma essa perspectiva da religião, Deus torna-se uma realidade inquestionável. Para a religião, Deus é o “pai real” e o “amor real”, algo real, vivo e pessoal. Nele podemos identificar “qualidades vivas”. Essa afirmação da entidade divina corresponde a uma negação do homem: a religião se afirma pela abstração do homem e do mundo. Mas o fundamento desse processo de abstração permanece, pois a religião só pode abstrair-se das limitações humanas, não de sua essência: a religião “deve acolher novamente nesta abstração e negação aquilo de que ela se abstrai ou crê se abstrair”[4]

Assim, no mundo religioso temos um processo fundamental: objetivação/abstração. O segredo da religião é que o homem objetiva sua essência e se faz objeto deste ser objetivado. O ente divino se transforma em sujeito, o homem em objeto. Eis, então, a contradição que se verifica: “Ao ser o homem aparentemente rebaixado ao mais profundo abismo, é na verdade levado às alturas.”[5] Assim como aparece a divisão objetivação/abstração, Feuerbach também inclui os termos subjectivo/objetivo. A essência do homem representa sua dimensão subjetiva: “Quanto mais subjetivo, quanto mais humano for Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exteriorizado, mas do qual ele se apropria novamente.”[6]

O que Feuerbach propõe para se destruir essa ilusão é a tomada de consciência da realidade humana através da Filosofia, pondo o infinito no finito, provando que Deus (a idéia) é criação do homem (do real), que a idéia de plenitude de Deus é um equívoco que acaba por dificultar o projeto de um homem verdadeiramente pleno e livre. Pela religião o sentido e a dignidade do ser humano e, em geral, tudo que há nele de positivo é fundado, como sua imagem fundamental, em Deus, e este se apresenta como a realização suprema, insuperável de todas as possibilidades humanas. O homem, portanto, não possui propriedade positiva nenhuma, que Deus não realize em si de modo incomparavelmente superior, infinito. Mas também o inverso parece ser válido, ou seja, todas as propriedades de Deus, sua sabedoria, seu poder, sua bondade, sua liberdade, encontram-se no homem em germe, em forma imperfeita. De acordo com isso, Deus não parece ter nenhuma propriedade que o homem não realize em si, ao menos de modo limitado, finito. Parafraseando Feuerbach: “Deus aparece como o ideal do homem, como o homem elevado e ampliado ao infinito: como poderia sem isso a religião conclamar a imitação de Deus? A própria infinitude, pela qual Deus parece distinguir-se do homem, já tem a sua raiz na aspiração infinita e nos anseios insaciáveis do homem. Se Deus é o homem na sua verdadeira dimensão, isto é, o homem propriamente dito, o homem ideal, o que resta ainda para o homem real, tal como existe na Terra? Essencialmente, poderá realizar o ser humano apenas de forma imperfeita, diminuída e derivada.”[7] A ilusão religiosa faz com que o homem real sinta-se sempre imperfeito e cada vez mais distante da sua própria essência, diante da onipotência e grandiosidade de um ser perfeito, externo a ele, apresentando-se como um ser finito, necessitado de auxílio, imerso no pecado, e devido ao abismo insuperável existente entre ele e Deus, jamais podendo chegar à plenitude verdadeira, original de um ser, apenas humano. O que Feuerbach considera, é que a transformação deste equivoco somente pode acontecer através de uma postura crítica, à partir de uma mudança na consciência, já que a unidade entre o finito e o infinito, não se realizam em Deus ou nessa Idéia Absoluta, mas somente a partir de um investimento na consciência de finitude e limites do próprio homem.

[1] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.65[2] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 315[3] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 315[4] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 69[5] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.71[6] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.72[7] RIESENHUBER, Klaus, Experiência Existencial e Religião, p.15

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