17.1.10

Contradição entre Fé e Amor

Feuerbach inicia o 27º Capítulo, intitulado “A contradição entre fé e amor” retomando um pouco a conclusão do capítulo anterior sobre os sacramentos expondo que estes simbolizam a contradição entre idealismo e materialismo, subjetivismo e objetivismo, mas que acima de tudo, nada são sem a fé e o amor. Por isso mesmo, a contradição dos sacramentos levam a contradição entre esses dois princípios. O mistério secreto da religião é a unidade da essência divina com a humana, pois Deus é a essência humana, conhecida como uma outra essência. É através do amor que é revelada a essência oculta da religião, e é na fé que encontramos a sua forma consciente. É justamente por isso, segundo Feuerbach que o amor identifica o homem com Deus e a fé separa Deus do homem. A fé isola Deus, quando o transforma num outro ser comum, cujo amor é idêntico ao amor do homem. A fé separa o homem no interior, consigo mesmo, logo, também no exterior, mas é o amor que cura as chagas que a fé abre no coração do homem. A fé transforma a fé em Deus numa lei, o amor é liberdade, ele não condena nem mesmo o ateu porque ele mesmo é ateu, mesmo que nem sempre negue teórica, mas praticamente a existência de um Deus especial, oposto ao homem. A fé separa o que é verdadeiro do falso e somente para si atribui a verdade, que é uma verdade determinada e especial. Neste sentido é que a fé é por natureza exclusiva, onde uma só é a verdade, um só é Deus. Feuerbach continua, procurando demonstrar que a fé é algo especial por se basear numa revelação especial de Deus, não podendo ninguém se apropriar dela por via comum, pela via que está aberta a todos os homens indistintamente, já que o que está aberto a todos é algo comum e que sendo assim, não representa nenhum objeto especial de fé. Deus é por si mesmo em pessoa uma questão de graça especial, conteúdo de uma fé especial. O Deus especial é o Deus como é objeto em especial para os cristãos, o Deus pessoal que somente é Deus é para os pagãos, os descrentes, em geral desconhecido, não é para eles. Ele certamente deve sê-lo também para os pagãos, mas de modo mediato, só se deixarem de ser pagãos e tornarem-se cristãos. É por isso que, sendo presa em si mesma, a fé limita o homem, lhe tomando a liberdade e a capacidade de valorizar devidamente o que lhe é diverso. A fé dá ao homem um sentimento especial de honra e de si mesmo. O crente se acha excelente perante os outros homens, elevado acima do homem natural, possuído de direitos especiais. Deus é o que faz essa diferença, é a diferença personificada e o privilégio do crente perante o descrente. A consciência do seu privilégio é o sentimento que o crente de si mesmo nesta outra personalidade. A fé aparece inicialmente só como uma separação ingênua entre crentes e descrentes. Crer significa o mesmo que ser bom, não crer o mesmo que ser mau. A fé limitada e presa, empurra tudo para a intenção. O descrente é para ela descrente por teimosia, por maldade, um inimigo de cristo. Por isso a fé assimila para si somente os crentes, mas os descrentes ela repudia. Ela é boa para com os crentes, mas má para com os descrentes. Na fé existe um mau princípio. O cristianismo não ordena de fato nenhuma perseguição a hereges, nem conversão à força de armas. Mas enquanto a fé condena, produz ela necessariamente disposições inamistosas, disposições das quais surge a perseguição a hereges. Amar ao homem que não ama a Cristo é um pecado contra Cristo, significa amar o inimigo de Cristo. Ser cristão significa ser amado por Deus, não ser cristão ser odiado por Deus, ser um objeto da ira divina. O cristão só pode então amar o cristão, o outro somente como cristão potencial, ele só pode amar o que a fé consagra, abençoa. É neste sentido que a fé é o batismo do amor. A fé é portanto, essencialmente partidária. Quem não é a favor de Cristo é contra Cristo. A fé só conhece inimigos ou amigos, nenhuma imparcialidade, ela só se preocupa consigo mesma. A fé é essencialmente intolerante por estar sempre ligada a ilusão de que a sua causa é a causa de deus, a sua honra é a honra de Deus. O Deus da fé é em si somente a essência objetiva da fé, a fé que é objeto para si mesma. Por isso se identifica também no espírito e na consciência religiosa a causa da fé com a causa de Deus. O próprio Deus participa. O interesse do crente é o mais íntimo interesse do próprio Deus, o que ofende a fé ofende a Deus, o que nega a fé, nega também ao próprio Deus. A fé é o oposto do amor. O amor só é idêntico à razão, mas não a fé, pois como a razão, é o amor de natureza mais livre, mais universal, mas a fé de natureza mais estreita, mais limitada. Somente onde existe a razão impera o amor geral, a razão não é nada mais que o amor universal. Foi a fé que descobriu o inferno, não o amor, nem a razão. Para o amor o inferno é um horror, para a razão um absurdo. A fé amaldiçoa todas as ações, todas as intenções que contradizem o amor, a humanidade, a razão, correspondem à fé. Todas as crueldades da história da razão cristã, das quais os nossos crentes dizem que elas não vieram do cristianismo, são oriundas do cristianismo, porque são oriundas da fé. Os atos de fé cruéis da cristandade correspondem, portanto, à essência da fé. A fé se transforma necessariamente em ódio, o ódio em perseguição, quando o poder da fé não encontra nenhum obstáculo, não se choca com um poder estranho à fé, o poder do amor, do humanitarismo, do sentimento de justiça. A fé em si mesma se eleva necessariamente acima das leis da moral natural. A fé é para si o mais elevado, porque o seu objeto é uma personalidade divina. Por isso ela faz depender de si a eterna felicidade, não do cumprimento de deveres humanos comuns. Como interiormente a moral é subordinada à fé, então ela pode, ser-lhe subordinada, sacrificada também exteriormente, na prática. É necessário que haja ações nas quais a fé se manifesta em distinção, ou em contradição com a moral, ações que são moralmente péssimas, mas louváveis pela fé, pois só têm em vista o bem da fé. Toda salvação está na fé, tudo portanto, na salvação da fé. Se a fé for ameaçada então é a felicidade eterna a glória de Deus ameaçada. Portanto, a fé dá seu privilégio a tudo, bastando que tenha por objetivo a sua promoção, pois ela é, rigorosamente, o único bem ao homem, como o próprio Deus é o único bom ser, então o primeiro e mais elevado mandamento é a fé. A fé sem amor ou indiferente ao amor contradiz a razão, o senso de justiça natural do homem, o sentimento moral, que como tal se impõe o amor imediatamente como lei e verdade. A fé torna-se, portanto, em contradição com a sua essência em si limitada pela moral, uma fé que não pratica nenhum bem, que não se manifesta pelo amor, não é verdadeira, viva. Mas essa limitação não se origina da fé mesma. É o poder do amor independente da fé que lhe dita leis, pois aqui a qualidade moral torna-se o sinal característico da legitimidade da fé, a verdade da fé é feita dependente da vontade da moral, uma relação que contradiz a fé. É certo que a fé torna o homem feliz, mas ela não lhe inspira nenhuma intenção realmente moral. É somente a moral que chama o crente á consciência, mas não a fé. A sua fé não é nada se não o torna bom. Mas, não é o próprio amor, não é o homem como objeto do amor, a base de toda a moral, o impulso das suas boas ações. Ele pratica o bem não pelo bem, não pelo homem, mas por Deus, por gratidão a Deus, que fez tudo por ele e pelo qual também ele por sua vez deve fazer tudo que lhe for possível. Neste sentido o conceito da virtude é o conceito do sacrifício recompensador. Deus se sacrificou pelo homem, por isso deve agora o homem se sacrificar a Deus. Quanto maior o sacrifício, tanto melhor a ação. Apesar dos atos contraditórios ao amor da história da religião cristã corresponderem ao cristianismo, e por isso mesmo os adversários do cristianismo terem razão quando culpam o mesmo das atrocidades dogmáticas dos cristãos, apesar disso eles contradizem também o cristianismo, porque o cristianismo, porque o cristianismo não é somente uma religião de fé, mas também do amor, que nos obriga não só a fé, mas também ao amor. O cristianismo sanciona ao mesmo tempo os atos que se originam do amor e os atos que se originam da fé sem amor. A Bíblia condena através da fé, perdoa através do amor. Mas ela só conhece o amor fundado na fé.

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