17.1.10

O Estágio Essencial da Religião

No 20° Capítulo, intitulado “O estágio essencial da religião”, Feuerbach procura demonstrar que a meta da religião é a salvação do homem. Neste sentido Deus tem uma finalidade prática e toda a relação do homem com Deus é visando única e exclusivamente alcançar a sua salvação. A religião cristã é a doutrina da salvação. Mas no cristianismo a salvação somente se dá através da infelicidade pois a felicidade mundana afasta o homem de Deus. São os sofrimentos e as doenças que reconduzem o homem a Deus. O prazer e a alegria expandem o homem, já a infelicidade e a dor o oprimem. Como o medo de não ser salvo obriga o homem a crer, é justamente aí que surge a necessidade da busca de Deus, através da religião. Deus é essencialmente um objeto exclusivo da religião, expressando isso de forma prática. Já a religião não faz apelo a razão, mas a afetividade. A religião não é uma entidade da razão mas sim da afetividade, pois apela ao instinto de ser feliz, aos sentimentos de medo, esperança, ao medo do inferno, a tudo aquilo que obriga a necessidade de crer. Mas o conceito mais elevado, a essência superior da religião é Deus. Sendo assim, o supremo delito é duvidar de Deus ou duvidar de que existe um Deus. Tudo que é bom e que surpreende o homem espontaneamente, que vai além da consciência prática, vem de Deus e tudo que é ruim, mau, nefasto, que surpreende espontaneamente em seus propósitos morais ou religiosos, vem do diabo. O demônio é o negativo, o mal que vem da essência não da vontade. Deus é o positivo, o bem que vem da essência não da vontade consciente. Tanto Deus quanto o diabo têm a mesma origem, somente a qualidade dessa energia é que é diversa ou oposta. Por isso mesmo a crença no demônio estava intimamente relacionada com a crença em Deus até tempos recentes, de forma que a negação do demônio era tida como ateísmo assim como a negação de Deus. Para Feuerbach a idéia do perfectum no sentido da essência de tudo o que foi criado, e que reporta a divindade de tudo que surgiu naturalmente e que está presente na natureza, é o que expressa a totalidade de um sentido religioso original, pois o espírito da religião surgiu justamente de um passado onde a atuação de Deus é compreendida dentro desta idéia maior de perfeição, unicidade e harmonia. A religião é anulada quando se introduz entre Deus e os homens a concepção do mundo, das chamadas causas intermediárias. A causa intermediária é uma capitulação da inteligência descrente diante do coração ainda crente. O que rompe a harmonia da conexão do homem com Deus é a introdução da concepção do mundo de forma racionalizada “uma capitulação da inteligência descrente diante do coração ainda crente”. A religião só toma conhecimento da existência das causas intermediárias, das coisas que estão entre Deus e o homem, através da contemplação sensorial, natural, portanto irreligiosa ou pelo menos não religiosa, uma contemplação que ela no entanto abate ao fazer das atuações da natureza as atuações de Deus. Mas a esta idéia religiosa contradiz a razão e o nexo natural, que concede as coisas naturais uma autonomia real. É justamente a partir daí que a religião passa a fazer da inegável atuação das coisas uma atuação de Deus através dessas coisas. “O essencial, o principal é aqui Deus e o não-essencial, o supérfluo é o mundo”. Por outro lado quando as causas intermediárias são postas em atividade, a coisa muda, passando a natureza a ser o essencial e Deus o não essencial. Deus é aqui um ser somente hipotético, derivado, não mais absolutamente necessário, original, mas apenas um ser surgido da dificuldade de uma razão restrita, para a qual a existência de um mundo por ela transformado numa máquina é inexplicável sem um princípio autonomo. Deus não existe por si, mas por causa do mundo, só existe para explicar a causa primeira do mundo máquina. O homem racional limitado se choca com a existência do mundo originalmente autônoma porque ele só a considera sob o ponto de vista subjetivo-prático, só em sua generalidade, só como uma máquina, não em sua majestade e imponência, não como cosmos. Com o choque que isto causa o homem passa a conceber para o mundo uma origem mecânica. A concordância entre a consciência religiosa e a mecânica é apenas na concepção de que o mundo é um mero produto da vontade, ou seja, ele foi feito, não se fez sozinho, pois o mecanicismo só necessita de Deus para o fabrico do mundo, o mecanicista interrompe e abrevia a atividade de Deuas através da atividade do mundo, enquanto que a religião só faz o mundo para mantê-lo sempre na consciência da sua nulidade, da sua dependência de Deus. A criação é para o mecanicista o último fio delgado que ainda une a religião a ele. A religião para a qual a nulidade do mundo é uma verdade presente é para ele apenas a reminiscência da juventude. Por isso transporta ele a criação do mundo, o ato da religião, o não-ser do mundo para a distância, o passado, enquanto que a autonomia do mundo que envolve todo o seu pensar e agir, atua sobre ele com o poder do presente. Tal qual como a criação no sentido mecanicista, o mesmo acontece com os milagres que se pode aceitar, porque de fato existem, pelo menos na opinião religiosa, mas que só podem ser aceitos quando transportados para o passado, pois no presente ele exige tudo de modo natural. Quando já se perdeu alguma coisa pela razão, pelos sentidos, quando não mais se crê em algo de modo espontâneo, mas só se crê porque se crê, porque deve se crer na coisa por algum motido. Quando uma fé é internamente passada, então transporta-se também externamente o objeto da fé para o passado. Com isso a descrença se liberta, mas ao mesmo tempo ainda concede à crença um direito pelo menos histórico. O passado é aqui o feliz remédio entre crença e descrença. Da mesma forma, a criação é uma ação imediata de Deus, um milagre, pois não existia nada ainda, exceto Deus. Mas, o mecanicista evita o contato imediato com a divindade, ao transformar o presente, inserindo milênios entre a sua concepção natural ou materialística e entre a idéia de uma ação imediata de Deus. No sentido da religião éo contrário, Deus é o conceito que supre a falta da teoria. Ele é a explicação do inexplicavel que nada explica porque deve explicar tudo sem distinção. Deus é a noite da teoria mas que torna claro o espírito. O ato esencial da religião, no qual ela confirma o que denominamos como sua essência, é a oração. A oração é onipotente porque o que o devoto deseja com a oração, Deus realiza. Mas o devoto não pede só coisas espirituais, pede também coisas que estão fora dele, em poder da natureza. Deus não é para ele a causa distante, primeira, mas a causa atuante mais próxima, direta, de todos os fenômenos naturais. Todas as chamadas forças e causas intermediárias não são nada para ele na oração, se fossem algo para ele, o poder, o fervor da oração iria fracassar diante delas. O devoto quer ajuda imediata. Ele se refugia na oração com a certeza de que a oração possui poderes sobre-humanos e sobrenaturais. Na oração ele dirige-se diretamente a Deus. Deus é para ele portanto, a causa imediata, a oraação atendida, o poder que realiza a oração. A atuação imediata de Deus é um milagre, é por isso que o milagre está necessariamente ligado à concepção da religião. A religião explica tudo de maneira milagrosa, pois quando começa a religião, começa o milagre. Toda oração verdadeira é um milagre, um ato de poder milagroso. Mas os milagres só acontecem em casos extraordinários, quando o espírito está exaltado. Por isso existem também milagres de cólera. Com sangue frio nenhum milagre é realizado. É na exaltação que se manifesta a intimidade. O homem não ora semre com o mesmo fervor e intensidade, é por isso que muitas orações acabam sendo mal sucedidas. Somente a oração muito sentida manifesta a essência da oração. É o mesmo o que acontece com os milagres. Milagres acontecem quando o desejo do devoto por tal coisa reflete a essência da oração, algo imbuido de uma força divina. Na religião o homem coloca necessariamente a sua essência fora de si, coloca a sua essência como uma outra essência. Deus é o seu outro eu, sua outra metade perdida, na qual ele se completa. Só em deus o homem é total. Deus é para ele uma necessidade, quando lhe falta algo que ele não sabe o que é, Deus é este algo que falta, é o indispensável para ele, pois Deus pertence a sua essência.

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