17.1.10

1.1. INFLUÊNCIAS RECEBIDAS


Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(27.08.1770 - 14.11.1831)

Ludwig Feuerbach nasceu em Landschut, Baviera, no dia 29 de julho de 1804. Em 1823 iniciou, em Heidelberga, o estudo da teologia, passando depois para a filosofia. Em 1824 começou a freqüentar as aulas de Hegel em Berlim. Em 1828 obteve a livre-docência na Universidade de Erlangen, com a dissertação De ratione una, universali, infinita, na qual já começa a desenvolver o seu pensamento em polêmica com Hegel. O caráter independente e o extremismo das suas concepções interromperam a sua carreira acadêmica, mas isto lhe permitiu dedicar-se com maior empenho à reflexão e a redação dos seus escritos. Feuerbach morreu em 13 de setembro de 1872, em Rechenberg, perto de Nuremberga, Alemanha, aos 68 anos.

Todo o pensamento de Feuerbach visa a desconstrução dos conceitos religiosos tradicionais, sem com isso pretender suprimir a religião, que, aliás, ele considera necessária por tornar presentes no homem os seus ideais. O que ele deseja é alertar contra as ilusões causadas pela religião “... especialmente contra a ilusão de se entender o ser no qual se hipostatizam os ideais do homem como se ele não fosse o homem, mas algo que existisse em si mesmo.” [1], o que para Feuerbach é a grande fraqueza da religião, a causa de todo erro e fanatismo.

Inicialmente Feuerbach tornou-se um fervoroso hegeliano, mas acabou distanciando-se do mestre, tendo em vista que a filosofia especulativa de Hegel não rompe com a teologia. Hegel reconhece a verdade da esfera da religião, deixa-a subsistir ao lado da esfera da filosofia, admitindo que a religião exprime, na forma de representação ou imaginação o absoluto que a filosofia consegue apreender na forma de conceito; enquanto Feuerbach em oposição á especulação procura converter a teologia em antropologia sem deixar resíduos, mostrar que não há verdade da religião a não ser pela conversão integral, consciente e voluntária de sua esfera na filosofia e na política. Fazendo do objeto da filosofia “o mais real dos seres” e não “uma essência abstrata”, substituindo o espírito pelo homem real e total, Feuerbach denuncia os equívocos do discurso hegeliano e apresenta-se como filósofo conseqüente e decidido da imanência sem restrições”[2]

Depois da morte de Hegel, a escola hegeliana se dividiu diante do problema da interpretação da doutrina religiosa, nascendo assim a direita e a esquerda[3] hegeliana. Porém nos restringiremos aqui a esquerda hegeliana, com o intuito de explicitar o fio condutor da religião como questão filosófica. Max Stirner, Bruno Bauer, o próprio Feuerbach, Engels e Karl Marx, foram alguns dos discípulos que compuseram a esquerda hegeliana, e que foram convertendo-se de uma concepção idealista para uma compreensão essencialmente materialista da história e de toda a realidade, cada um trazendo a sua contribuição para a transformação da filosofia especulativa.

Max Stirner se opõe a Hegel de modo veemente, destruindo toda a base religiosa do seu pensamento. Em sua principal obra “O único e sua propriedade”, Stirner faz uma crítica radicalmente anti-autoritária e individualista da sociedade prussiana contemporânea bem como à tão citada modernidade da sociedade ocidental. Oferece ainda um vislumbre da existência humana que descreve o ego como uma não-entidade criativa além da linguagem e da realidade, ao contrário do que pregava boa parte da tradição filosófica ocidental. Seu livro proclama que todas as religiões e ideologias se assentam em conceitos vazios, que, após solapados pelos interesses pessoais, egoístas dos indivíduos, revelam sua invalidade. O mesmo é válido às instituições sociais que sustentam estes conceitos, seja o estado, a igreja, o sistema educacional, ou outra instituição que reclame autoridade sobre o indivíduo. Para ele a idéia de um ser supremo é uma criação da mente humana, pois não existe nenhum Deus além, acima e fora do homem. Deus é a própria essência do homem sublimada, pelo qual o homem é capaz de fazer os piores sacrifícios, negando sua liberdade e se submetendo a lei. Para Stirner toda religião é imoral porque submete o homem ao decreto divino e lhe prescreve obediência e resignação. A argumentação de Stirner explora e extende os limites da crítica hegeliana que o autor dirige a seus contemporâneos, principalmente a seus colegas hegelianos, especialmente Feuerbach quando disse que “...este substituíra meramente a palavra Deus pela palavra Homem. Dessa forma, Feuerbach rezaria pelo homem.” Segundo Stirner, “ele não teria deixado de ser hegeliano, porque apenas transpôs o ideal teológico e divino por uma noção abstrata de humanidade.”[4]. Feuerbach num artigo publicado em 1845, em Vierteljahreschrift de Wigand, intitulado “Essência do Cristianismo em sua Relação com O Unico e sua Propriedade”, rebate e trava uma polêmica contra as críticas de Stirner, e, numa outra ocasião escreve a seu irmão dizendo ser Stirner “o autor mais genial e livre que conheci". Apesar de toda a sua crítica à religião, Stirner não chega a fundamentar uma filosofia humanística de fato.

Hegel havia ensinado a seus alunos ver a história do mundo como um processo dialético, ditado e dirigido pelo espírito absoluto ou pela razão implícita dos acontecimentos. Esses se sucederiam segundo uma férrea lógica: tudo o que é fenece em decorrência de sua contradição interna; tudo o que é sobrevive na síntese superior em que tese e antítese se unem. Bruno Bauer, em nome da própria dialética hegeliana, desmantela todas as presunções do pensamento absoluto ao dizer que a dialética exige, com efeito, que o processo do pensamento admita que qualquer afirmação que pretenda impor-se como verdadeira em sentido absoluto, resulte, por isso mesmo falsa: o próprio processo do pensamento se encarrega de anulá-la. Tudo é relativo. O absoluto e a eternidade de Deus são substituídos pela perene mutabilidade e infinita variedade pelas quais a natureza humana demonstra a sua inexaurível capacidade. O Homem é o novo Deus do homem: a humanidade é o único ideal legitimo dos indivíduos humanos.

Hegel havia afirmado energicamente que a religião e a filosofia tinham o mesmo conteúdo, mas também proclamou a distinção entre uma e outra, demonstrando que enquanto a religião exprime o conteúdo na forma de representação, a filosofia exprime-o na forma de conceito:“É verdade que Hegel não se tinha pronunciado sobre os problemas especificamente teológicos, como os de Deus, da encarnação e da imortalidade da alma; no entanto, é preciso reconhecer que os princípios da sua doutrina não só não exigiam, como de certo modo, não lhe permitiam que se pronunciasse sobre o assunto. Com efeito, por outro lado, Hegel reconhecia à religião histórica plena validade no âmbito da sua forma, portanto no campo da representação; por outro, sustentava que o conteúdo da religião devia ser retomado pela filosofia e integrado ao plano dos conceitos, onde esses problemas deixam de ter o mesmo significado. Todavia, Hegel tinha apresentado a sua filosofia como justificação especulativa das realizações históricas do espírito do povo: a Igreja e o Estado; assim se explica a posição de muitos discípulos em manterem-se fiéis ao espírito do mestre, utilizando a sua filosofia para justificarem as crenças religiosas tradicionais.”[5]

Feuerbach retoma com mais ordem e incisividade as críticas de Stirner e Bauer a Hegel no terreno da religião, contribuindo, deste modo, para a plena realização da “reformulação” materialista do idealismo. N’A Essência do Cristianismo, afirma contra Hegel que “o fundamento da verdadeira filosofia não é por o finito no infinito, mas o infinito no finito”[6], isto é, que a tarefa da filosofia não é provar que o homem é produzido por Deus, mas, inversamente, que Deus é produzido pelo homem, ou seja, “não foi a idéia (Deus) que criou o homem, mas o homem que criou a idéia (Deus)”[7].

Feuerbach encontrou no hegelianismo uma filosofia que permite pensar o indivíduo e a subjetividade em sua relação com o todo, o espírito ou o gênero. O que o levará a se distanciar do sistema hegeliano é a ambigüidade com que este apresenta a religião. Hegel e ainda mais os jovens hegelianos tendem a deixar religião e filosofia lado a lado em coexistência pacífica. Para Feuerbach, trata-se desde logo de pensar o gênero ou a essência humana e não um ser estranho à mesma, significando a crença num ser transcendente um desconhecimento da verdadeira natureza humana e de sua relação com o divino que a caracteriza.

Num contexto mais amplo, a obra de Feuerbach se situa no longo processo de esclarecimento religioso, iniciado com o renascimento italiano e levado a cabo pelo iluminismo europeu no séc. XVIII. Se a religião sem a filosofia leva ao mundo fantástico das representações mais supersticiosas, a filosofia da religião peca por sacrificar a fantasia religiosa no altar da razão, vendo somente o momento racional em toda representação religiosa.

Feuerbach critica assim, o procedimento filosófico comum da modernidade, que consiste em se aproximar da religião, quando isto é feito, com o intuito de descobrir um núcleo de racionalidade na mesma ou, mais genericamente, de estabelecer a relação que ainda é possível entre uma verdade seguramente conhecida pela razão e uma verdade pretensamente revelada. Este procedimento acaba por reduzir a religião a algo que ela não é e nem pode ser, fazendo dela um veículo fraco e distorcido de expressão das verdades da razão. No fim do processo de esclarecimento, a religião já não encontra um lugar adequado no mundo das representações, tendo finalmente soado a hora de seu ocaso. O pensamento que busca salvar a religião, reservando-lhe um lugar delineado e fixado pela razão, não salva nada de essencial, pois “não é aquilo em que a fé concorda com a razão geral que fundamenta a essência da fé, mas sim aquilo através do que ela diverge da razão.”[8] Se a razão é o lugar do universal, a religião é o lugar do particular, e, sobretudo, se a razão se esgota no pensamento do universal em conceitos, a fé religiosa dela se diferencia por se apresentar em imagens, uma descrição perfeitamente hegeliana do distintivo da religião. Feuerbach, no entanto, propõe-se tratar das imagens religiosas como imagens, evitando reduzi-las a pensamentos, como teria feito Hegel em sua superação filosófica da religião. “Neste livro não se tornaram as imagens da religião nem pensamentos – pelo menos no sentido da filosofia especulativa da religião – nem realidades, mas são consideradas como imagens – isto é, a teologia não é tratada nem como uma pragmatologia mística, como o é pela mitologia cristã; nem como ontologia, como o é pela filosofia especulativa da religião, mas como uma patologia psíquica.”[9]

Ao desafio moderno de um mundo e de um homem sem Deus e sem divino, Feuerbach responde com uma divinização do humano. Por isso, sua relação com a religião nunca será meramente negativa, mas sempre crítica, procurando separar o que nela há de verdadeiro daquilo que é falso. Este processo apóia-se em última instância no princípio hegeliano, segundo o qual a verdadeira religião manifesta o espírito humano numa forma inferior de representação, cabendo à filosofia chegar ao mesmo com a forma conceitual superior de representação, ou dito à maneira de Feuerbach: “A religião é a primeira autoconsciência do homem. Sagradas são as religiões precisamente por serem a transmissão da primeira consciência do homem.”[10] Feuerbach antropologiza não só o espírito hegeliano, mas, e de forma quase enciclopédica, as representações religiosas em geral. Contudo, seu processo de antropologização não significa uma dessacralização do universo, como no caso do iluminismo, mas antes redunda numa sacralização do próprio homem. Se em Hegel a dignidade do homem resulta de ser ele a consciência de Deus, para Feuerbach a consciência que o homem tem de si mesmo é algo divino.

[1] MONDIN, Batista, Curso de Filosofia,vol. III, p.94
[2] HUISMAN, Denis, Dicionário dos Filósofos, p.369
[3] MONDIN, Batista, Curso de Filosofia,vol. III, p.47
Os hegelianos da direita, J.K.F. Rosenkranz e G. Herdermann, alterando a doutrina do mestre, procuram o acordo com a ortodoxia e com a fé cristã tradicional, salvando a imortalidade da alma individual, a união da natureza divina e humana na pessoa de cristo, a personalidade e a transcendência de Deus, etc. Os hegelianos de esquerda, L. Feuerbach, K. Marx e outros, desenvolvem a filosofia de Hegel como radical negação dos fenômenos sobrenaturais da vida religiosa. A direita teve vida breve, ao passo que a esquerda se afirma amplamente.
[4] DUCLÓS, Miguel, Texto A Manutenção do Pensamento de Marx, E-mail: miguel@consciencia.org,
[5] Cf. ABBAGNANO, Nicola - História da Filosofia – vol IX, pág 223.Vide:: AQUINO,Marcelo F. de, O Conceito da Religião em Hegel, São Paulo, Editora Loyola, 1ª ed., 1989- Filosofia 10= Coleção dirigida pela Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus. Vide: VAZ, Henrique C. de Lima – Escritos de Filosofia: problemas de Fronteira, editora Loyola, 1ª ed. São Paulo, 1980 – Filosofia 3 = Coleção dirigida pela Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus. VAZ, Henrique C. de Lima – Escritos de Filosofia II : Ética e Cultura, editora Loyola,1ª ed. São Paulo, 1988, Filosofia 8, anexo VI: Cultura e Religião, pág 280 à 288
[6] MONDIN, Batista, Curso de Filosofia, Vol. III, p.93
[7] Idem
[8] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 19
[9] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 19
[10] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 309

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