17.1.10

3.2. TEOLOGIA x ANTROPOLOGIA

A religião ocupa um lugar central no pensamento de Feuerbach por considerar ser esta a primeira tomada de consciência do homem de sua própria natureza. Feuerbach pretendeu substituir a metafísica e a teologia pela antropologia criticando toda filosofia que defendesse o absoluto e ao mesmo tempo propondo uma filosofia que partisse do homem sensível, cuja natureza subsistisse em si mesmo e que se relacionasse com o outro.

Mas, se a religião é autoconsciência do homem como consciência de Deus, isto não quer dizer ainda que o homem já tenha consciência de que é dele mesmo que se trata na representação do divino. Pelo contrário, a consciência religiosa caracteriza-se precisamente por desconhecer este detalhe, encontrando-se inteiramente imersa na consciência de um outro, razão pela qual o pensamento filosófico levará à sua superação: “A religião é o primeiro e ademais indireto autoconhecimento do homem. A religião antecede, por isto, em toda parte, a filosofia, assim como na história da humanidade também na história de cada um.”[1] Ela é a primeira tomada de consciência do homem de sua própria natureza, sendo indireta por não se dar como consciência de si mesmo, mas como consciência de Deus, portanto de um outro, exterior ao homem. Diretamente o homem toma consciência de si mesmo na filosofia, quando pelo pensamento conceitual chega a se conceber a si mesmo como aquele de quem emanam todas as coisas, inclusive o que antes atribuía a Deus.

Neste sentido, o processo de antropologização do sagrado deve ser levado até as últimas conseqüências, reconhecendo-se que o homem só atribui a Deus aquilo que considera divino em sua própria natureza. Assim, quando os cristãos deixam, seu Deus assumir a natureza humana e agir como um homem estão na verdade elevando à dignidade do divino a própria natureza e atividade humana. A superação da consciência religiosa significa apenas despedir-se da ignorância em que ela persiste acerca de si mesma. O pensamento crítico-filosófico abre a perspectiva da verdadeira gênese do divino: “Do que faço uma propriedade, uma determinação de Deus, isto já reconheci antes como algo divino. Uma qualidade não é divina por ser possuída por Deus, mas Deus a possui porque ela é divina em si e para si e por si mesma, porque Deus não é Deus se ela lhe falta. O homem – este é o mistério da religião – objetiva para si mesmo sua essência”.[2] Sendo assim, o pensamento crítico-genético proposto por Feuerbach não negará simplesmente a religião, mas procurará em suas representações a essência do homem, uma vez conhecida e estabelecida a verdadeira gênese da consciência religiosa.

A essência do homem para Feuerbach é explicada logo na introdução d’A Essência do Cristianismo, quando coloca que o homem se distingue de todos os animais pela consciência que tem de si mesmo. Os animais também constituem espécies, apresentam-se como elo numa cadeia de sobrevivência da espécie, mas eles não tomam consciência desta sua natureza específica. O homem se distingue, pois, dos animais por possuir consciência em um sentido bem preciso: “Consciência no sentido mais estrito só existe onde um ser tem como objeto seu gênero, sua essência. O animal certamente se tem como objeto enquanto indivíduo – por isso ele sente a si mesmo – mas não enquanto gênero”[3] O distintivo do gênero humano é, por conseguinte, a consciência que ele tem de seu próprio caráter genérico, o que significa que a ênfase antropológica não recai de maneira alguma sobre os momentos particulares ou individuais do ser humano, mas precisamente sobre aqueles momentos que caracterizam a consciência humana como consciência do gênero humano. Esta tomada de consciência do homem como gênero da-se em duas etapas, o religioso e o crítico-filosófico. A consciência de que é dele mesmo que se trata: “A religião é a inconsciente autoconsciência do homem”[4] Na religião o homem toma consciência de si como de um outro, projetando suas propriedades numa entidade divina separada, não chegando à consciência de que ele mesmo é esta entidade. Na filosofia, o homem chega à consciência disso, concebendo-se como aquele de que emanam todas as qualidades divinas naturalmente enquanto gênero e não enquanto indivíduo.

Diferente do animal, que só realiza as funções genéricas no contato direto com outros indivíduos, o homem é capaz de realizar funções genéricas sem necessariamente entrar em contato com outro indivíduo humano, pois ele é capaz de fazer do gênero seu objeto de pensamento, articulando os interesses genéricos no pensamento e no discurso, antes mesmo de entrar em contato com outros indivíduos. Sendo esta capacidade de pensar a humanidade ou o gênero humano o caráter distintivo do ser humano, se encontrará nela também a resposta à questão sobre a essência do homem. O que constitui o gênero humano ou a humanidade no homem é precisamente aquilo que é necessário para que ele possa se relacionar genericamente ou universalmente com sua própria natureza genérica. “Mas o que é pois, a essência do homem, de que ele tem consciência, ou o que constitui o gênero, a humanidade propriamente dita do homem? - A razão, a vontade, o coração - A força do pensamento é a luz do conhecimento, a força da vontade é a energia do caráter, a força do coração, o amor. Razão, amor, força de vontade são perfeições, as perfeições da essência humana, sim, perfeições essenciais absolutas.”[5] Estas mesmas perfeições que o homem religioso atribui a seu Deus são as perfeições do gênero humano, razão pela qual não existe uma oposição total entre a consciência religiosa e a consciência filosófica da essência humana. A razão, a vontade e o amor são as forças supremas da humanidade, constituindo a essência do homem enquanto tal, a ponto de Feuerbach considerar que eles são o fundamento ou a razão da existência humana, existindo o homem para pensar, amar e querer.[6] A razão por sua vez, não tem outro objetivo senão a razão, o amor, o amor, e a vontade, a vontade: pensamos para pensar, amamos para amar e queremos para querer, para ser livres. Por serem seu próprio objetivo, por serem fim em si, estas qualidades do ser humano são verdadeiramente divinas. E através destas qualidades o homem entra em contato com sua natureza genérica, transcendendo sempre sua individualidade. Pela razão, o homem pensa o universal, o genérico, o que diz respeito à humanidade como um todo. Pela vontade, o homem quer a si mesmo enquanto ser genérico, sacrifica sua individualidade pelo bem do gênero humano. Pelo amor, o homem se relaciona imediatamente com os outros como partes deste todo maior que é o gênero humano. Toda a essência do homem exige dele como indivíduo o sacrifício de sua individualidade e a obediente realização de suas funções genéricas.

A Essência do Cristianismo é dedicada também a mostrar como a religião cristã sempre falou desta essência do homem, apenas sem ter a consciência de que se tratava do gênero humano.
“Ao demonstrar a essência antropológica da religião Feuerbach esclarece que o fundamento e o objeto principal da religião é o homem, mas a religião concebe o ser humano como consciência do infinito e da eternidade. Por isso ele repõe a questão em outros termos – o fundamento e o objeto da filosofia é o homem, mas este ser humano é limitado e finito. A religião desemboca na teologia porque dispõe do conjunto de relações com o ser transcendental e diferente do homem. A filosofia encaminha-se para uma antropologia na medida em que desfaz o erro e o fanatismo, valoriza a inteligibilidade e a realidade do homem, admitindo a unidade infinito-finito, uma unidade que se realiza no homem e não em Deus”[7].
A leitura genética que Feuerbach faz das representações religiosas leva à destruição da consciência religiosa por sua superação, mas não a negação da natureza divina dos predicados obtidos com esta análise, pois agora é o gênero humano o portador de todos os atributos da divindade. O conteúdo e objetivo da religião, portanto, é totalmente humano, o mistério da teologia é a antropologia, a essência divina é a essência humana.

O objetivo de Feuerbach, portanto, é reivindicar a integralidade do ser humano, bem como, a percepção da religião como a relação do homem com sua própria essência, ou seja, que em Deus e por Deus, é a si mesmo que o homem visa.

[1] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.31[2] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.44[3] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.17[4] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.47[5] FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p.19[6] Idem[7] PAIVA, Eliana, Prof. Dept° Filosofia UECE, Texto A Transformação da Teologia em Antropologia, segundo Feuerbach.

Um comentário:

  1. - Na Antropologia não existe uma preocupação em determinar "certo- errado". Tudo é cultural, portanto,
    se fala em culturas diferentes.Eeu estudo um determinado grupo de pedófilos sobre o olhar de entende-los, mas não tenho um lugar crítico sobre suas atitudes, não as determinando erradas. Como lidar com esta falta de padrões, academicamente, sem me basear em padrões cristãos para tal?
    - Alguns teóricos da antropologia dizem que é inerente ao homem o fato de produzir cultura, mas que a cota de inerencia bastaria por ai. " Se as mulheres são frágeis, cultural...homem não chora, cultura". Tirando esses exemplos bem ralos, o que é natural é SEMPRE necessário, seguindo uma lei da natureza. Falam sobre potencialidades naturais, ao passo que precisar comer não é inerente ao homem, mas sim uma potencialidade ao ato de comer.
    Ouvi o Ariovaldo dizer que tem traços comuns independente da cultura. Tais como Lealdade é sempre vista como algo positivo e valoroso, e covardia é menosprezada em qualquer cultura.
    Teria como argumentar com a antropologia sobre ter esses traços inerentes ao ser humano, aqueles que como cristãos sabemos de longa data. " Toda criança faz birra, mente, bate..." ?
    Pode me explicar esras questões, por favor. Mande em meu email...victorbonora@gmail.com
    desde já agradeço.

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